segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

KHRYSTAL

"Ela é uma invenção de Deus, mas quem administra é o Satanás"
Zé Dias sobre Khrystal

Precisou de muito pouco. Um intervalo de tempo entre “Boa noite” e a primeira canção. Em instantes, toda a platéia do Teatro Alberto Maranhão já confirmava o que a música dizia: sim, ela canta samba. E muito mais.

O dia era treze, do mês do maio. A noite? Faceira, bela, negra. Ia-se já longe um século que no Brasil era assinada a Lei Áurea. Cento e vinte anos depois, Khrystal dava um show. Não em um quilombo, um cárcere ou numa aldeia, mas num palco. "Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou. Fora a luta dos Inconfidentes pela quebra das correntes nada adiantou e de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo desta terra quando pode cantar canta de dor". Com esse Canto das três raças, fez valer as vozes que construíram o que hoje entoamos "Pátria amada".

Em cena, ora mulher, ora menina. Toda cheia de graça, corpo transformado em extensão de seu canto. Bailou, encantou e só pra ninguém esquecer, arrematou: "quando eu canto estou sentindo a luz de um santo, estou ajoelhado aos pés de Deus. Canto para anunciar o dia, canto para amenizar a noite, canto pra denunciar o açoite, canto também contra a tirania...".

Esta é Khrystal Glayde Saraiva Santos. Para o público, cantora. Para si, uma intérprete. Ou ainda como entoava Renato Russo, fera, bicho, anjo, mulher, mãe, filha. Essa mesma do show, mas outra completamente diferente conversara comigo dias atrás em sua casa. Cabelos presos, discos no chão, cigarro na mão e filhos a solicitar sua atenção, comecei minha incursão por um território até então, desconhecido.

Lembranças

O gosto pela música remonta à infância, quando brincando na sala, correndo pela cozinha, a caçula de dez filhos pegava no ar a rebarba das canções que os irmãos ouviam. São dessa época as primeiras lembranças de Jackson do Pandeiro e Elino Julião. Já a vocação chegou sem avisar, eco dos acordes do violão de Seu Saraiva – o pai da moça –, que não tinha a menor intenção de ver a filha seguir carreira artística. “Eu lembro a primeira vez, da imagem dele assim tocando. Eu falei: puta merda. É isso que eu quero pro resto da minha vida”. Vida a palpitar no corpo pequeno de 1,56m e que em 2008 festejou 27 anos.

Dos tempos idos, recordações agradáveis. Na memória, as incontáveis bicicletas, os banhos de lama, o jogo de bola de gude. Quem a via soltando pipa ou levando tombo, talvez pensasse ser a Mariazinha, um Joãozinho. Sempre muito amada, muito liberta. Até que um dia...

A música lhe pôs contra a vontade do chefe da família. A menina de casa passou à menina de rua porque queria cantar, e durante dois anos, os dias foram de "chuva e sol, poeira e carvão". Por sucessivas estações, estrelas se transmudaram em teto. Ao cair da noite; ao raiar do dia, descobertas que poderiam ter sido evitadas; transformações que chegaram cedo demais. “Fui mocinha na rua, criei peitinho na rua. Ou eu amadurecia ou eu dançava.” Quando surgia oportunidade, acobertada pela mãe, aparecia em casa, no seu amado Gramoré, na Rua Ilha Bela, Zona Norte de Natal. Era a chance de almoçar, tomar banho...“Passei por perrengues brabos. A Praça Vermelha foi o meu Grande Hotel”.

Em meio às adversidades, descobriu no Beco da Lama, o Abech pub – o lugar onde primeiro trabalhou com música. Fez do palco a sua cama e por cerca de quatro anos, todas as sextas-feiras, depois de saciar a fome com um sanduíche que fazia às vezes de banquete, Khrystal tocava quatro horas do mais clássico repertório de barzinho. “A galera gritava: toca Cazuza, Faz parte do meu show. E eu ia”.

Dias melhores

E assim como vai-se um dia e vem outro, a situação melhorou. Khrystal começou a ganhar dinheiro, estabeleceu amizades com outros músicos, alugou um canto pra morar, conheceu Zé Dias. Voltou às boas com o pai e no lar de Dona Maria Patrocínio e Seu Saraiva, a reunião de família voltou a ser completa e barulhenta. “Minha família é um astral sensacional. Sempre fomos muito humildes, mas de uma felicidade infundada”.

Sempre espontânea e intuitiva, já ficou de olhos vidrados em muito músico para colar os acordes e à surdina, quietinha, tentar executá-los. Carlança que o diga. Sem paciência para freqüentar uma escola de Música, estuda em casa. Sempre foi assim, mesmo quando ganhou o primeiro instrumento, um violão italiano. Para isso, aproveita seu horário às avessas. Afinada com o guardião do sono, Hypnos, só se recolhe alta madrugada e adora dormir a manhã inteira. Não gosta do dia, prefere a tranqüilidade noturna e no tempo livre, mais música. O barato é pôr o disco pra tocar e ficar fazendo nada, atenta a canção, fumando um cigarro.

Pra essa filha de Poti, fazer disco nunca foi um desejo, porque ela gosta mesmo é do palco. “Eu invisto minha vida no espetáculo”. Apesar disso, no momento vive a fase de pré-produção do segundo disco solo, o De Contente. O nome incorpora bem sua condição atual, alegre, de bem com a vida. Com canções autorais, esse trabalho escapa do estigma do côco ao qual o primeiro disco ficou vinculado. “Eu tenho ódio disso! O disco ficou muito tachado. ‘É de côco’. E se você ouvir, ali você tem soul, baião e outras vertentes. Mas como sempre se precisa rotular alguma coisa...” A declaração é debochada, de quem está liberta de amarras e descobriu cedo que o ser humano precisa se comunicar muito bem, ser paciente e generoso.

Planos

Quando se chamar saudade, a mãe de Lynda e Jackson espera ser lembrada como alguém que sempre lutou com unhas e dentes e deixou tudo na vida pra fazer música. A maternidade se deu aos 17 anos e foi um divisor de águas. Da preocupação com o próprio umbigo rumo à descoberta de que tudo agora era para os filhos, até mesmo os sonhos. De uma forma muito delicada, enquanto acariciava o filho que adormeceu durante nossa conversa em seu colo, foi me revelando: “Tudo o que eu quero é que eles cresçam bem. Saudáveis, leais, fiéis aos seus princípios, felizes. Que respeitem uns aos outros, que se apaixonem. Que se quiser ser dentista, que seja o melhor, mas seja de verdade, por inteiro”.

Confiante em um ser lá em cima que é incrível, capaz de fazer uma lua que não balança e uma estrela que não caí, está tudo azul para o futuro. Planos? Seguir turnê pelo Brasil, apresentar show novo em Natal, lançar Disco. “Tocar, tocar, tocar, tocar, tocar. Não me imagino fazendo outra coisa que não seja música”. Não poderia ser diferente, afinal "do poder da criação sou continuação e quero agradecer, foi ouvida minha súplica. Mensageira eu sou da música. O meu canto é uma missão, tem a força de oração e eu cumpro o meu dever há os que vivem a chorar, eu vivo pra cantar e canto pra viver".




Matéria publicada na íntegra na revista Brouhaha. N° 12, maio/jun. 08
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Evaldo Gomes

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