No dia 14 de fevereiro de 1970 nascia em Natal, na Maternidade Escola Januário Cicco, Irinalva Melo da Silva. A família era de Lajes, morava em uma fazenda, mas complicações no parto quiseram que o primeiro choro da menina fosse derramado na Capital. De volta à terra dos pais, transformou melancia em boneca, viu o sangue escorrer das mãos enquanto apanhava algodão e comeu rapadura acreditando ser confeito. Aos seis anos de idade, mudou-se de vez para a cidade onde nasceu. Nas Quintas aprendeu a pegar morcego no trem, na Praia do Meio tatuou o corpo, no Instituto Kennedy se preparava para o magistério, quando a Banda Gália passou e carregou a menina com os livros na mão. Foi ao show da Blitz na Redinha, encrencou com o corpo magro, conheceu o cigarro, disse que nunca iria casar e num arroubo juvenil quis ter uma produção independente. Com as irmãs, de tanto tentar, um dia ela conseguiu realizar o primeiro corte de sucesso e Irinalva, ficou no passado – um nome estranho na lista de chamada da professora de literatura infantil. Agora ela é Nalva Melo e sua fábrica de sonhos tem endereço certo: Avenida Duque de Caxias, 110, Ribeira, Edifício Bila.
“Eu não era menina de casa, eu era menina de rua”
Nas lembranças de Nalva Melo, Lajes lateja. Não necessariamente a cidade, mas a fazenda Ameixa onde a menina passou os primeiros anos de vida e pra onde retornava na época de férias. Foi lá que o espírito livre dela encontrou terreno fértil. “Eu não era a menina de ficar dentro de casa brincando”. Sempre muito danada e curiosa para os padrões dos pais e dela mesma, aprendeu cedo a andar de bicicleta e na época da colheita do algodão, munida de bizaco e ainda que ferisse as mãos, participou de muitas corridas para ver quem apanhava mais a fibra.
Muito criativa, até porque as condições econômicas não permitiam excessos, Nalva sonhava com uma boneca – nem que fosse um exemplar de plástico –, mas nunca via seu desejo tomar ares de realidade. Inconformada com a situação, às vezes apanhava uma melancia e dava um trato todo especial na fruta. “Eu pegava a melancia e fazia boquinha, olhinho, enrolava num pano e ficava brincando. Era a minha boneca. E o meu pai ficava puto porque eu estragava as melancias”.
Chegando à Natal foi morar no bairro das Quintas e em meio a Rua Potengi, recortada por trilhos, aprendeu a pegar morcego no trem, soltar pipa, jogar bola e roubar sal dos comboios. A proximidade do mangue também deu vazão à outra de suas traquinagens: aproveitando a maré seca, Nalva e alguns colegas da rua quebraram a corrente de uma canoa que estava ancorada e quando a maré encheu, a embarcação foi desaparecendo ao mesmo tempo em que o pescador, indignado, buscava os culpados. “Arrependo-se até hoje disso que fiz. Depois que me entendi de gente percebi a maldade daquela brincadeira, afinal era o instrumento de trabalho de um homem”.
O porquê de tanta danação, nem Nalva sabe ao certo explicar. “Talvez fosse pra chamar atenção. Eu sempre fui totalmente diferente das minhas irmãs. Eu não me sentia uma pessoa especial no meio da minha família, acho que porque eu era muito rebelde”.
“Ela nasceu com o dom de ser mãe”
Dona Maria de Lourdes de Melo fez uma exigência quando as filhas nasceram: “Minha mãe queria todo mundo no ‘I’”. E dessa idéia se originou o nome Irinalva. A segunda de quatro filhas, diz que como mãe, nunca viu igual à dela e tão intuitiva. D. Maria fazia crochê, pintava, cortava cabelo e provocava o imaginário das meninas. “Eu herdei da minha mãe a capacidade de transformas as coisas”.
Em época de seca no interior, D. Maria ia lavar roupa no tanque e como companhia, levava Nalva e as irmãs, que ficavam sob uma tenda. Quando a fome apertava, a solução era o confeito e a balinha dessas horas era rapadura. Mas o doce trazia consigo a sede e na falta de água, a mãe dizia: “Engula a saliva que mata a sede”. Nessas horas, Nalva só pensava: “Como, se nem saliva tem? Meu Deus, será que vai matar mesmo a minha sede?!”
Quando ocorreu a separação dos pais, a responsabilidade bateu a porta e o alimento algumas vezes faltou. Durante uma Páscoa, o pão era escasso e D. Maria logo improvisou: juntou as meninas em volta da mesa e lhes contou da última ceia de Jesus, dividindo entre elas a comida que havia. “Na verdade, acabou matando a nossa fome. Não pelo alimento, que era pouco, mas pela história. Isso eu não esqueço da minha mãe”.
“Ele era a minha referência. Ainda é: ele está em mim”
Seu Francisco Garcia da Silva tinha certeza de que seria pai de um menino. Ora, se o primeiro filho foi mulher, o segundo devia ser um macho. Mas a lógica não funcionou e a prova disso é Nalva. Com toda a sua feminilidade, a dona dos olhos amendoados mexeu com o coração do pai e seu comportamento espevitado fez com que Seu Francisco a elegesse o homem da casa.
No tempo que passaram afastados, devido ao divórcio, Nalva sempre lembrou do pai – um homem vaidoso, que tinha muita garra e queria viver bem, vencer na vida. “Eu sempre lembrava do meu pai. Eu tenho dele a vontade de ver as coisas acontecendo, a determinação. Eu era a única que ele chamava pra dar um cafuné, pra contar as coisas... Quando ele comprou a primeira televisão não agüentou e veio me dizer. A gente tinha uma afinidade bacana”. E uma relação assim, o tempo não destrói.
O último encontro dos dois foi na comemoração do aniversário dele. Bastante bebida, bode, uma festa como Seu Francisco gostava em Lajes. Quando o fim da noite se aproximava, a despedida inevitável transcorreu entre lágrimas. “Me bateu uma sensação de que ia acontecer algo com meu pai. Vim para Natal chorando compulsivamente e ao chegar aqui fiquei ligando em busca de notícias. Exatamente 40 dias depois disso, meu pai morreu”.
“Peraí, eu sou linda!”
Quem vê a desenvoltura dessa artista das tesouras, não percebe que o corpo esguio foi uma fonte de problemas durante muito tempo na vida de Nalva. “Eu me achava magra demais e nunca ia à praia de biquíni. Eu inventava modelitos. Não me aproximava dos meninos porque me achava horrorosa. Para perder esse complexo, precisei ser mãe, Iuri já estava com dois anos quando eu me olhei no espelho e me dei conta: ‘Peraí, eu sou linda!’”. A partir do dia em que a lagarta criou asas, foi por terra a dificuldade em encontrar namorado. “As pessoas nos vêem como a gente se apresenta e eu me apresentava cheia de defesas, com medo de ser observada. Depois da mudança, eram tantos namorados”, revela entre risos.
“Eu queria uma produção independente. Tu acha? Coisa de quem é jovem mesmo”
Bebidas alcoólicas, amigos alcoviteiros, Baile das Kengas, um homem disposto, uma mulher jovem e nada de contracepção. Com um enredo desses, o espermatozóide encontrou o óvulo, ocorreu à fertilização e a gravidez aconteceu na vida de Nalva Melo.
Depois que o carnaval passou, a menstruação não chegou e o exame realmente confirmou, o nervosismo em ter que revelar ao até então amigo seu novo status – elevado a pai –, foi vencido. “Foi péssimo porque ele duvidou. Aí eu falei: não, mas tudo bem. Essa produção eu quero independente. Só quero lhe comunicar que você é o pai”.
Depois da surpresa inicial, o casal ficou junto por um período. “Foi bacana no tempo que aconteceu”.
“Eu quero um filho de libra”
Com um histórico de relacionamentos não muito amistosos com pessoas do signo de escorpião, quando gestante a maior preocupação de Nalva era o filho nascer no final de outubro, data em que a gestação chegava ao fim. Para que essa “desgraça” não ocorresse, sobrou para os gnomos garantir que o filho fosse libriano. “Eu pegava um monte de gnomos e colocava em cima da barriga, aí dizia: nasça logo, um pouquinho antes. Eu mereço um filho de libra, eu quero”. Gnomos ou não, alguém ouviu as preces e Iuri nasceu numa quarta-feira, às 16h30, numa lua nova do dia 19 de outubro de 1993.
“No dia que o Brasil ganhou independência, eu perdi a minha”
Dizem que o primeiro beijo a gente nunca esquece e a experiência de Nalva reforça o ditado. Na idade aproximada de 11 anos, havia um menino na rua Potengi que povoava os sonhos da infante. Ela considerava ele lindo, mas ele nem imaginava os efeitos que provocava naquele coração tímido até que um dia, uma coleguinha de Nalva entregou o jogo. Foi quando garoto se aproximou e sapecou um beijo na bochecha de Nalva Melo, para logo em seguida sair correndo e deixar a menina feliz da vida andando pela linha do trem. “Eu lembro até hoje aquela coisinha gelada na minha bochecha. Fiquei: ai meu Deus, Ele me deu um beijo!” Já o tal beijo francês não recebeu a mesma acolhida: “Meu primeiro beijo de boca foi péssimo. Ahrr, eu não gostei”.
O que Nalva tem gostado nos últimos cinco anos é da companhia de um brasiliense com quem divide casa e coração. O romance começou doce, com uma porção de mel Esperança que Nalva e outras amigas tomaram antes de ir à uma festa, na esperança de descolar um amado e afastar a ressaca. O recurso deu tão certo que num dia chuvoso, Jefferson foi convidado para passar um fim de semana na casa da namorada. “Eu lembro dele levantando a mala pesada e eu pensando: O que eu estou fazendo com a minha vida? Eu acho que já estava sentindo que aquela mala não ia mais voltar”, entrega sorrindo e completa: “Isso fez cinco anos. No dia que o Brasil ganhou independência, eu perdi a minha. Era sete de setembro”.
“Quem trabalha Deus ajuda”
Aos dezesseis anos e em busca de uns trocados pra tocar a vida, Nalva deixou o primeiro trabalho em um jardim de infância e foi ser manicure, ainda que sem muito talento, no centro da Cidade. Suas atenções, entretanto, eram voltadas a tesouras e cabelos e a toda hora estava ela ao lado da cabeleireira. Em casa, começou a cortar o cabelo das irmãs e certa vez sua irmã mais velha ficou uma semana sem ir ao colégio em decorrência de um corte executado por Nalva. Tanto tentou que um dia, teve um corte reconhecido e copiado. “Minha irmã Neide pediu que cortasse os cabelos dela e eu fiz um cabelo curto de um lado e comprido do outro. Passaram-se uns dias, chegou uma cliente no salão e elogiou o cabelo: ‘- Ai que cabelo lindo. Eu quero o meu igual’”. A moça das unhas iria estrear finalmente como cabeleireira. “Eu saí da mesinha de manicure me tremendo. Minha nossa senhora, e agora?” Ela não parou mais.
Em 1990 surgiu a oportunidade de trabalhar em uma campanha política. Em 1991 veio o convite da TV Tropical para trabalhar na emissora e lá, foram três anos e seis meses de atividades em três horários. “Eu chegava às 6h, maquiava, operava teleprompter e saia às 7h30. Voltava às 11h e saia às 13h30. Finalmente ia às 18h e saia às 20h. Nesses intervalos, eu ia atender cliente em domicílio e como ainda não era motorizada, eu andava de ônibus. Tinha dia de pegar oito ônibus”. Foi aí que a televisão da sua casa se transformou em moeda de troca e deu lugar a uma mobilete. “A mobilete era ruim, vivia dando problema, mas me levava pros lugares”.
No exercício da profissão, além de aperfeiçoar a técnica, Nalva que nunca freqüentou curso profissionalizante de cabeleireiro passou a ser reconhecida pelo seu estilo. “Quando olho para alguém, sempre quero trazer um pouco de leveza para o rosto das pessoas. E eu tenho um público muito jovem e alternativo como jornalistas e artistas, além de senhoras de espírito jovem. Então, eu aproveito”.
“No meu salão eu atendo desde pastorador de carro a Governador do Estado com o mesmo tratamento e o mesmo preço”
Em 1994 Nalva descobriu a Ribeira e virou dona do próprio negócio. “Quando cheguei aqui, enlouqueci com o tamanho do lugar e o preço”. Nos primeiro meses, ela chegou a ter um sócio que depois de falcatruas, incendiou o salão. Nalva então ficou sozinha e com medo. “Achava que não dava conta, era uma responsabilidade enorme, mas foi tão legal! Várias pessoas me ajudaram e uma coisa que eu não tenho é preguiça de trabalhar”.
Além dos clientes conquistados, Nalva ganhou outros tantos: da Tribuna, do Itep, da Associação do Ministério do trabalho... E todo o dinheiro que entrava no espaço era investido nele. Nessa fase inicial, o salão se assemelhava a outros tantos recantos de estética espalhados pela cidade e recebeu o nome Nalva Melo Cabelos e Beleza. Os poucos móveis boiavam no prédio que um dia abrigara o BANDERN e serviço não rareava.
Depois de um encontro com o artista Marcelus Bob, em 1998, Nalva teve a idéia de realizar uma exposição pra chamar às pessoas até o salão. A partir desse dia, os eventos não pararam mais de ocorrer e com a revitalização do Largo, os amigos fizeram do ambiente um ponto de encontro e enquanto esperavam a hora de descer para a Rua Chile, ficavam por lá tomando um café de garrafa.
A guinada começou no ano de 2000, durante uma viagem à Áustria onde Nalva representou o Brasil com suas perucas de sisal e descobriu os cafés vienenses. “Quando vi aquilo, pensei: eu tenho um espaço onde posso fazer uma coisa dessas. Aí quando voltei fiz uma exposição com as fotos da viagem e um show de Pedrinho Mendes. O Café estava nascendo”. E quem já se aconchegou no puff gigante revestido de chita, foi recebido por Nalva e seu estilo All star, escutou a música de Chico Buarque enquanto planejava o corte do cabelo, bebericou uma cerveja assistindo um clássico italiano, sentou na cadeira de barbeiro pra curtir uma apresentação teatral ou aproveitou o tempo da tinta no cabelo para saber qual a novidade política ou cultural da cidade, sabe bem o que é o Nalva Melo Café Salão. “Foi a melhor coisa que eu fiz. Foi o grande boom da minha vida profissional e como espaço de trabalho”, orgulha-se a inventora.
Incorporando estilo retrô, no Salão os objetos têm memória e há uma penca deles. Há cartazes de filmes; luminárias adequadas a poste; cadeiras do Cine Panorama; um rádio transmissor; máquinas de costura catadas em brechó; mesinhas de cabeleireiro feitas em São Gonçalo por um senhor que trabalha com torno; biombo feito de portas abandonadas; cadeiras de caixas da Telemar; cristaleira e até uma geladeira cor de rosa que veio em uma carroça do bairro do Alecrim, carregada por um burrico.
De tão aconchegante, o Nalva Melo Café Salão foi cenário para revistas de moda, capa de Cds; palco de aniversários, batizado e até o casamento da atriz Quitéria Kelly. Também já serviu de camarim para o grupo Los Hermanos, Pitty e João Gordo e por lá, muitos políticos da cidade tem circulado. Como se não bastasse, virou espaço para performances culturais e se hoje oferece música aos domingos e cinema às sextas, já faz um tempinho que Nalva passou a ser identificada como Produtora cultural. “Eu acho que é porque eu gosto de festas. Eu só fiz receber os amigos como eu já recebia, mas agora de uma forma legal, tendo cervejinha, um uísque, um café expresso, mesas pra sentar...”
Para 2009, aguardem festas. O Nalva Melo Café Salão completa 15 anos e sua administradora promete um grande debut. “Quero fazer uma retrospectiva de tudo que rolou: música, teatro, artes plásticas; livro, poesia...Vai acontecer durante todo o ano e os clientes podem esperar novidades”.
“Eu morava a 200 metros do supermercado e parecia que morava a milhões de quilômetros”
Angústia, irritabilidade. No final de 2004, Nalva não era a mesma. A carga exaustiva de trabalho somada a problemas emocionais levou à sua vida a Síndrome ou Transtorno do Pânico – um problema sério de saúde que atinge de 2 a 4% da população mundial. No período da doença, que atingiu o sistema nervoso, Nalva passou por tratamento psiquiátrico e apesar do seu apreço pelas festas, ficou afastada da vida noturna por uns dois anos, pois o convívio com muitas pessoas se tornara desagradável.
Durante uma crise, Nalva estava no supermercado que ficava próximo a sua antiga casa. “Eu sai de lá correndo para minha casa, largando tudo. Eu não agüentava mais aquele cantor lá em cima cantando, as pessoas batendo no meu carrinho e parecia que eu não ia mais chegar em casa. Eu morava a 200 metros do supermercado e parecia que morava a milhões de quilômetros. Eu queria entrar em casa, não queria que ninguém falasse comigo”, relata.
Depois da tempestade, chegou a bonança: “Eu acordo cedo, levo meu filho até a escola, atendo a Chefe da Casa Civil e desço para o Salão”. “Encontrei uma casa em Pirangi e nos finais de semana meus amigos não faltam. É um ambiente muito gostoso, cheio de fruteiras e onde eu fico contemplando o quintal.”
“Eu sou D-e-t-e-r-m-i-n-a-d-a”
Determinada, cervejeira e fumante inveterada quase chegando aos “enta”, no aniversário do ano passado, um galo se agregou a sua vida e a dos cachorros Tobias, Laica e Scooby. “Esse galo canta de manhã e no final da tarde. Já tentaram até matar, mas eu disse que esse galo só vai morrer de velho”.
Com planos de viajar para se abastecer de sonhos, Nalva Melo é a única senhora do seu destino. “Todas as coisas que desejei, eu me empenhei e realizei. Sou feliz fazendo muitas coisas. Cortando cabelo encerro sonhos; maquiando me fiz uma socióloga; inventando festas virei produtora; interagindo com artistas descobri o sisal. Sou um mundo de ouvidos! Tá ótimo!!”
Matéria públicada no jornal O Poti. Natal, 28 dez 2008.Texto: Maísa CarvalhoFotos: Elisa Elsie