terça-feira, 27 de janeiro de 2009

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO, O HISTORIADOR DO BRASIL


Natal, século XX. Época em que a Internet e o correio eletrônico não se faziam presentes na vida das pessoas. A casa de número 377, na Avenida Junqueira Aires, em Natal, recebia correspondências freqüentemente. Para seu ilustre morador, Luís da Câmara Cascudo, as cartas eram suporte de pesquisa e fonte de dados para suas obras. Por meio dessas, o intercâmbio de informações e o registro do cotidiano construíram vínculos de amizade para toda a vida.

“Grandes” como Carlos Drummond de Andrade, Luís Gonzaga, Walt Disney, Monteiro Lobato, Juscelino Kubitschek, Henrique Castriciano, Chateaubriand, Jorge Amando, José Lins do Rego, Roquette Pinto, Érico Veríssimo e Mário de Andrade, trocaram com o famoso potiguar saberes e idéias; ensinaram e aprenderam mutuamente.

Nascido aos 30 de dezembro de 1898 na Rua das Virgens, cidade do Natal, a capital do Rio Grande do Norte, Cascudo foi o filho único de Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Anna Maria da Câmara Cascudo. Do pai, escreveu Cascudo, subiu lentamente na vida e fora rico para os padrões da época, possuindo uma chácara no bairro do Tirol, que chamavam ‘principado’. “Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo”, lembrava Cascudo.

O menino aspirou à Medicina, mas quis o destino que ele se formasse bacharel em direito e nunca deixou de escrever. Até pouco antes de sua morte, em 30 de julho de 1986, Cascudo trocou correspondências. Ao longo de seus 87 anos, esse “provinciano incurável” reuniu 15 mil cartas que atualmente se encontram no acervo da família. “Ele tratou de fazer sua obra gigantesca, composta por mais de 150 livros, enviando cartas para conhecidos e até desconhecidos de todo o mundo”, revela sua filha, Anna Maria Cascudo. A fim de viabilizar as informações, Cascudo realizava inquéritos diretos e escrevia cartas aos amigos, usando-as sempre como fontes de pesquisa. Ao escrever seus livros e artigos, não hesitava em recorrer aos companheiros. Por meio de suas “vítimas indefesas”, como costumava apelidar os amigos do Brasil e do exterior encarregados de lhe fornecer informações, a obra “cascudiana” ganhou forma, sotaque e cores.

Uma obra composta por uma quantidade dantesca de livros escritos durante anos de dedicação à busca das origens da cultura popular brasileira. Tido por muitos, como o folclorista mais minucioso e abrangente, são dele títulos como: Alma Patrícia; Dicionário do Folclore Brasileiro; Literatura Oral; Histórias que o Tempo Leva; Vaqueiros e Cantadores; Prelúdio da Cachaça; Rede de Dormir; Jangada; Locuções Tradicionais do Brasil; Superstições no Brasil; Geografia dos Mitos Brasileiros; Meleagro: Catimbó e Magia Branca no Brasil; Geografia do Brasil Holandês; História da Alimentação no Brasil e Sociologia da Açúcar.

Em cada livro, ensaio, revela um misto de Brasil e mundo. Nunca pensou em deixar sua terra, Natal, e para o ex-presidente da República José Sarney, Cascudo foi o grande guardião da nossa brasilidade. “Brasileiro no hábito alimentar, brasileiro no morar, brasileiro ao deitar na rede nordestina, ao contar ‘causos’ de todo o Brasil, ao registrar nossas lendas, nosso folclore.”

Jornalista, etnólogo, antropólogo, historiador, folclorista, não escondia a predileção em ser chamado de professor. Em texto escrito por ele próprio, conta: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.”

Essa sede de saber, essa busca por respostas e principalmente, a sua afetuosidade humana, fizeram dele um homem querido e admirado. Para representar a cultura brasileira em um dos parques temáticos da Flórida, Walt Disney pediu para Cascudo informações sobre o Brasil e em retribuição, lhe enviou um exemplar do livro Alice no País das Maravilhas. Já Monteiro Lobato, pediu para que seu amigo lhe mandasse características do Saci-Pererê, para compor o personagem. Tamanha era a intimidade entre eles, que Monteiro Lobato certa vez lhe escreveu: “- Minha carta não tem assunto nenhum, é só uma carta para saber como você está.”

Hoje, a trajetória do Folclorista pode ser observada no Memorial Câmara Cascudo e o museu da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, leva seu nome.





Artigo publicado na íntegra na Revista AJUFE de Cultura. N°6, nov. 08
Texto: Maísa Carvalho
Colaboração: Juliana Rocha e Júlia Medeiros
Foto: Juliana Rocha

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

KHRYSTAL E ZÉ DIAS: OPERÁRIOS DA MÚSICA


Ainda saindo do carro, eu escuto: “Você tem quarenta segundos até que o portão (eletrônico) se feche.” Quatro andares acima, eis que encontro uma A4. Em cor azul, está escrito: Casa de Zé Dias e Khrystal. A porta é aberta e a dona da casa me convida a entrar. Em meio à profusão de discos, aparece de bermuda, o dono da voz que havia me alertado momentos antes. Um homem, uma mulher, um casal. Dois operários da música potiguar.

Toda história a dois começa com um encontro. Às vezes ele é planejado, em outras, simplesmente acontece. No caso de Khrystal e Zé Dias, a música foi o ponto em comum desde o princípio. Tudo começou no ano de 2004, quando a amiga de ambos, Raquel Grossman, decidiu que a cantora deveria conhecer o produtor e então, apresentou o casal. O local da troca do primeiro olhar diverge. Ela conta que foi no Solar Bela Vista, ele diz que foi no Hotel Residence, onde morava à época.

Fato é que a primeira impressão não agradou muito Khrystal. “Achei ele grosseiríssimo. A primeira coisa que ele fez foi olhar pro meu decote.” Mas a atenção foi logo desviada quando Khrystal, trajando bermuda, sandália, camiseta e de violão na mão, soltou a voz. A música escolhida era de Nado Reis, All star. Meses depois veio o namoro, o casamento sem papel passado e o filho, Jackson Luiz Brasileiro – uma homenagem a Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Tom Jobim.

Cotidiano

Vida de marido e mulher tem lá suas peculiaridades e nem sempre segue a ladainha do cotidiano. No apartamento transformado em lar, não existe isso de lado da cama. Na hora que o sono bate, o corpo escolhe o melhor lugar para descansar e pode ser na rede, na cama do outro quarto ou na Box enorme que eles compraram porque Zé é muito espaçoso. Na hora de ir pra cozinha, não tem discussão. Zé é o chef. Ele abre uma cervejinha, deixa ali na pia e vai cortando a cebolinha, o pimentão... nessas horas Khrystal provavelmente está tocando violão, escutando música, buscando algo na internet. Sim, porque diferente de Zé que só joga paciência e acessa a conta do e-mail, ela adora baixar música, pesquisar cenário, figurinos e tudo mais que puder levar pro espetáculo.

O gosto por ficar em casa é compartilhado por ambos, assim como o apreço nada saudável, pelo cigarro. Contudo, há uma diferença. Khrystal tem planos de parar, apesar de afirmar que sua relação com o cigarro é de sentimento “é uma relação sentimental, parece que é o sexto dedo”. Já Zé Dias, traçando duas carteiras por dia, não recomenda, porém justifica “Eu vivo muito aperreado. Eu não tenho tranqüilidade financeira e me vingo no cigarro. Descobri que se fumar morro e se não fumar, morro do mesmo jeito.” Bem, ao menos a bebedeira ele deixou e quem recebe o crédito é Khrystal.“Eu deixei de beber, violentamente, por conta dela. Ela que me tirou do vício e eu não gosto quando ela bebe. Dizem que eu faço bem a ela. É mentira. Ela que faz muito mais bem a mim”.

Dividindo coração e profissão, depois de quatro anos de relacionamento, eles conseguem separar a vida pessoal da profissional, mas no começo se atrapalhavam muito. Tanto que Zé Dias fala: “Você unir as duas coisas é muito difícil. Agora, eu só tenho consciência de uma coisa, o que sustenta a relação é o amor.”

Juntos em casa, juntos nos shows, deram vida ao Disco Coisa de Preto e aos que imaginam que a voz do produtor cala a da cantora, Khrystal deixa claro: “Quem manda no que eu faço sou eu. Eu não tenho onde cair viva, mas morta eu caio em qualquer lugar. Quem dá a cara pra bater lá em cima sou eu. Quem tá com o microfone na mão sou eu.” Afirmativa assinada em baixo por Zé Dias. “Ela tem consciência de tudo. Independente de mim, Khrystal dá certo.”




Matéria publicada na íntegra na Revista Brouhaha. N° 12, maio/jun08.
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Evaldo Gomes

ZÉ DIAS

"Eu sou agoniada, mas ele parece que vai morrer de infarto a cada dez minutos"
Khrystal sobre Zé Dias

Ele sonhava em fazer um projeto que contemplasse a música brasileira e como ocorre nos sonhos, havia mais de um caminho a seguir. Renegar suas aspirações ao mundo das idéias não era uma possibilidade, então ele começou a agir e hoje, quem curte a música produzida no Rio Grande do Norte, conhece Zé Dias. Um sujeito grande, habitualmente de bermuda, camiseta, um copo, um cigarro na mão.

Na manhã de nossa entrevista, a mesa estava posta com os segredos para se começar bem o dia: queijo, gravador, suco, listinha de tópicos, café, frutas e disposição. Daí, era só torcer para o i-Pod funcionar corretamente.

O primeiro assunto? A atividade de produtor cultural. Isto porque de domingo a domingo, ele promove o Praia Shopping Musical. Organizar um show é fichinha, mas a história não era bem essa quando há treze anos, às dezoito horas e trinta minutos de uma terça-feira, Natal conhecia o Projeto Seis e Meia. A novidade não era exclusividade da platéia, Zé também estava fazendo descobertas. “Eu nunca tinha feito um show na minha vida. Eu descobri a alegria de trabalhar com 36 anos de idade, a fazer o que eu gosto.”

A estréia foi com Pedro Mendes e Nico Resende e com o tempo, o Projeto foi crescendo, crescendo... o Projeto foi tendo prejuízo, prejuízo... Até que um dia, Fagner tocou no Seis e Meia a custo zero. “Com o dinheiro que nós apuramos em Fagner, pagamos todas as contas e ganhamos um álibi.” Depois desse dia, quando o produtor, desconhecido, ligava para um artista nacional, ele sempre tomava a precaução de esclarecer “– Olhe, Fagner veio.” Com isso, o palco e o público do TAM só tiveram a agradecer. Chico César. Zeca Baleiro. Antônio Nóbrega. Mestre Ambrósio. Rita Ribeiro. Demônios da Garoa. Jamelão e outros tantos lotavam duas sessões. Pode-se dizer que esse foi o período do encontro de Zé Dias com a produção cultural.

Caminhos

Em 1999 partiu em busca do novo. De lá pra cá, produziu o Natal em Canto – que ocorria no América – e conheceu Lane Cardoso, com quem produziu dois discos: um com músicas de Elino Julião e outro com canções carnavalescas. Trabalhou com Rejane Luna e por essa época, chegou à sua vida, Khrystal. Depois disso, foi movimentar as noites da Zona Sul. Em dois anos no Sea Way, foram oitocentos shows. No Praia Shopping, onde está há quase um ano e meio, já são seiscentos.

Quem estiver de bobeira e passar por aquelas bandas pode assistir a apresentação do ouro e da prata musical potiguar. “Eu não preciso buscar lá fora mais ninguém para cantar aqui. Eu acho a produção daqui muito, mas muito boa e acima da média. Mas também tem muita gente ruim, tem uns que eu faço por conveniência da profissão. Agora tem uns muito, muito especiais.” Gente como Pedrinho Mendes. “Eu queria que Pedrinho se convencesse que é o melhor artista desse Estado.”

Emotivo, na hora que o show começa Zé Dias é público, “o produtor vai pro inferno.” O apreço pela música só é menor que a paixão pelo Futebol. É um aficionado “Sou louco por Romário e odeio Dunga e Zagalo”. Em suas referências, mais futebol. Quando pergunto se ele nasceu em Natal, me responde que sim, ali no Alecrim, “pertinho de Marinho Chagas” e continua... Na infância, para além do ambiente da rua, dos amigos, do colégio, “Alberi foi a primeira pessoa que me fez feliz”. Isso porque quando menino, Zé Dias assistiu a uma partida em que lá estava o jogador pernambucano. Apesar de toda fascinação, foi praticando outra atividade em que ele se destacou. Por duas vezes foi goleiro da seleção brasileira de handebol.

Família

Se hoje denomina-se produtor, para as más línguas, é um reprodutor. Tem cinco filhos e nunca conseguiu reunir, de uma só vez, todos eles. Consciente, me diz ser um pai ausente e repousa a esperança no futuro “eu acho que vou ser um bom avô, mas como pai eu sou muito ruim. Eles são melhores do que eu.” Eles são: Vítor; Artur; André; Júlia e Jackson e em cada um, Zé consegue vislumbrar uma fagulha de semelhança, ainda que não se lembre das datas de seus aniversários.

Entre um gole de café, a mordida no pão e o furto, descarado, do abacaxi que repousava no meu prato, vai contando que planeja lançar dois livros. Um abordará sua vida de produtor e os muitos causos; o outro será uma pequena introdução ao carnaval brasileiro. Farão sucesso? Não se sabe. Mas Zé espera que os amigos comprem, a fim de que ele possa realizar um desejo. “Meu sonho de consumo é passar trinta dias em Porto Mirim ou em Jacumã com Khrystal e meus filhos todos.”

Nesse embalo, Zé Dias segue a me apresentar Zé Dias – um homem que tem horror a atender telefone e não curte navegar por mundos virtuais, além da fronteira do e-mail. Alguém que usufrui seu tempo descompromissado em casa, escutando música e detesta que lhe peçam cortesia ou cigarro. “Eu não fumo maconha porque eu viveria brigando com quem me pedisse, porque maconha é o cigarro mais democrático que eu conheço”.

Já na estrada da vida há 48 anos, houve acertos e erros também... Especialmente devido aos excessos, ao uísque. “Eu cometi muitos erros na minha vida porque era alcoólatra.” Hoje, passado. Tempo distante da rotina de quem às sete da manhã, está na rua em busca do pão para manter a música de cada dia. Nessa vida de produtor, ele me diz, “não existe essa palavra ‘férias’. E a palavra mais forte é liseu.”

Decepções? Também ocorrem no meio. A mais recente ele fez questão de me falar, um pouco chateado, ainda. Não entendeu o porquê de Khrystal – pelo volume de trabalho em 2007 e elogios de crítica – não ter ganhado o prêmio de música do Diário de Natal. “O prêmio está se tornando um prêmio de instrumentistas. E a comissão, eu acho que poderia ver mais o trabalho de cantores. É uma comissão julgadora de músicos instrumentais. Porque só ganha instrumentista?”

Entre as amizades e inimizades, uma fã especial: Dona Francisca. A mãe vive preocupada até hoje e diz que a profissão do filho não tem futuro. “E ela tem razão”, adverte ele. Quando a música chegou a sua vida, lá pelos anos 60, 70, ela vinha pela voz materna; pedia passagem pelas mãos do pai, que lhe presenteava com discos – um gesto de aparente contradição.

Falar de família traz lembranças. O ar escapa, os olhos marejam, a voz embarga. “Se ele (José Dias, o pai) tivesse vivo, mesmo sem escutar ele iria a todos os shows. Ele me apoiou muito! O cara ser surdo e comprar disco!? Isso não existe. Como é que ele sabia que disco era bom?”

Explosivo. Apaixonado. José Dias Júnior segue com a certeza de que, enquanto nos movemos, nada é definitivo. Na trilha sonora, qualquer canção de Tom Jobim, executada por João Gilberto. Para a posteridade, a herança dos filhos é coisa certa. “Eles herdarão a história de um cara que trabalhou para a cultura desse Estado. E pra mim isso basta.”



Matéria publicada na íntegra na revista Brouhaha. N° 12, maio/jun.08
Texto: Maísa Carvalho

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

KHRYSTAL

"Ela é uma invenção de Deus, mas quem administra é o Satanás"
Zé Dias sobre Khrystal

Precisou de muito pouco. Um intervalo de tempo entre “Boa noite” e a primeira canção. Em instantes, toda a platéia do Teatro Alberto Maranhão já confirmava o que a música dizia: sim, ela canta samba. E muito mais.

O dia era treze, do mês do maio. A noite? Faceira, bela, negra. Ia-se já longe um século que no Brasil era assinada a Lei Áurea. Cento e vinte anos depois, Khrystal dava um show. Não em um quilombo, um cárcere ou numa aldeia, mas num palco. "Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou. Fora a luta dos Inconfidentes pela quebra das correntes nada adiantou e de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo desta terra quando pode cantar canta de dor". Com esse Canto das três raças, fez valer as vozes que construíram o que hoje entoamos "Pátria amada".

Em cena, ora mulher, ora menina. Toda cheia de graça, corpo transformado em extensão de seu canto. Bailou, encantou e só pra ninguém esquecer, arrematou: "quando eu canto estou sentindo a luz de um santo, estou ajoelhado aos pés de Deus. Canto para anunciar o dia, canto para amenizar a noite, canto pra denunciar o açoite, canto também contra a tirania...".

Esta é Khrystal Glayde Saraiva Santos. Para o público, cantora. Para si, uma intérprete. Ou ainda como entoava Renato Russo, fera, bicho, anjo, mulher, mãe, filha. Essa mesma do show, mas outra completamente diferente conversara comigo dias atrás em sua casa. Cabelos presos, discos no chão, cigarro na mão e filhos a solicitar sua atenção, comecei minha incursão por um território até então, desconhecido.

Lembranças

O gosto pela música remonta à infância, quando brincando na sala, correndo pela cozinha, a caçula de dez filhos pegava no ar a rebarba das canções que os irmãos ouviam. São dessa época as primeiras lembranças de Jackson do Pandeiro e Elino Julião. Já a vocação chegou sem avisar, eco dos acordes do violão de Seu Saraiva – o pai da moça –, que não tinha a menor intenção de ver a filha seguir carreira artística. “Eu lembro a primeira vez, da imagem dele assim tocando. Eu falei: puta merda. É isso que eu quero pro resto da minha vida”. Vida a palpitar no corpo pequeno de 1,56m e que em 2008 festejou 27 anos.

Dos tempos idos, recordações agradáveis. Na memória, as incontáveis bicicletas, os banhos de lama, o jogo de bola de gude. Quem a via soltando pipa ou levando tombo, talvez pensasse ser a Mariazinha, um Joãozinho. Sempre muito amada, muito liberta. Até que um dia...

A música lhe pôs contra a vontade do chefe da família. A menina de casa passou à menina de rua porque queria cantar, e durante dois anos, os dias foram de "chuva e sol, poeira e carvão". Por sucessivas estações, estrelas se transmudaram em teto. Ao cair da noite; ao raiar do dia, descobertas que poderiam ter sido evitadas; transformações que chegaram cedo demais. “Fui mocinha na rua, criei peitinho na rua. Ou eu amadurecia ou eu dançava.” Quando surgia oportunidade, acobertada pela mãe, aparecia em casa, no seu amado Gramoré, na Rua Ilha Bela, Zona Norte de Natal. Era a chance de almoçar, tomar banho...“Passei por perrengues brabos. A Praça Vermelha foi o meu Grande Hotel”.

Em meio às adversidades, descobriu no Beco da Lama, o Abech pub – o lugar onde primeiro trabalhou com música. Fez do palco a sua cama e por cerca de quatro anos, todas as sextas-feiras, depois de saciar a fome com um sanduíche que fazia às vezes de banquete, Khrystal tocava quatro horas do mais clássico repertório de barzinho. “A galera gritava: toca Cazuza, Faz parte do meu show. E eu ia”.

Dias melhores

E assim como vai-se um dia e vem outro, a situação melhorou. Khrystal começou a ganhar dinheiro, estabeleceu amizades com outros músicos, alugou um canto pra morar, conheceu Zé Dias. Voltou às boas com o pai e no lar de Dona Maria Patrocínio e Seu Saraiva, a reunião de família voltou a ser completa e barulhenta. “Minha família é um astral sensacional. Sempre fomos muito humildes, mas de uma felicidade infundada”.

Sempre espontânea e intuitiva, já ficou de olhos vidrados em muito músico para colar os acordes e à surdina, quietinha, tentar executá-los. Carlança que o diga. Sem paciência para freqüentar uma escola de Música, estuda em casa. Sempre foi assim, mesmo quando ganhou o primeiro instrumento, um violão italiano. Para isso, aproveita seu horário às avessas. Afinada com o guardião do sono, Hypnos, só se recolhe alta madrugada e adora dormir a manhã inteira. Não gosta do dia, prefere a tranqüilidade noturna e no tempo livre, mais música. O barato é pôr o disco pra tocar e ficar fazendo nada, atenta a canção, fumando um cigarro.

Pra essa filha de Poti, fazer disco nunca foi um desejo, porque ela gosta mesmo é do palco. “Eu invisto minha vida no espetáculo”. Apesar disso, no momento vive a fase de pré-produção do segundo disco solo, o De Contente. O nome incorpora bem sua condição atual, alegre, de bem com a vida. Com canções autorais, esse trabalho escapa do estigma do côco ao qual o primeiro disco ficou vinculado. “Eu tenho ódio disso! O disco ficou muito tachado. ‘É de côco’. E se você ouvir, ali você tem soul, baião e outras vertentes. Mas como sempre se precisa rotular alguma coisa...” A declaração é debochada, de quem está liberta de amarras e descobriu cedo que o ser humano precisa se comunicar muito bem, ser paciente e generoso.

Planos

Quando se chamar saudade, a mãe de Lynda e Jackson espera ser lembrada como alguém que sempre lutou com unhas e dentes e deixou tudo na vida pra fazer música. A maternidade se deu aos 17 anos e foi um divisor de águas. Da preocupação com o próprio umbigo rumo à descoberta de que tudo agora era para os filhos, até mesmo os sonhos. De uma forma muito delicada, enquanto acariciava o filho que adormeceu durante nossa conversa em seu colo, foi me revelando: “Tudo o que eu quero é que eles cresçam bem. Saudáveis, leais, fiéis aos seus princípios, felizes. Que respeitem uns aos outros, que se apaixonem. Que se quiser ser dentista, que seja o melhor, mas seja de verdade, por inteiro”.

Confiante em um ser lá em cima que é incrível, capaz de fazer uma lua que não balança e uma estrela que não caí, está tudo azul para o futuro. Planos? Seguir turnê pelo Brasil, apresentar show novo em Natal, lançar Disco. “Tocar, tocar, tocar, tocar, tocar. Não me imagino fazendo outra coisa que não seja música”. Não poderia ser diferente, afinal "do poder da criação sou continuação e quero agradecer, foi ouvida minha súplica. Mensageira eu sou da música. O meu canto é uma missão, tem a força de oração e eu cumpro o meu dever há os que vivem a chorar, eu vivo pra cantar e canto pra viver".




Matéria publicada na íntegra na revista Brouhaha. N° 12, maio/jun. 08
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Evaldo Gomes

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

OSWALDO LAMARTINE DE FARIA, O SERTANEJO


“Cada vivente tem o seu Sertão. Para uns são as terras além do horizonte e para outros, o quintal perdido da infância”. A frase, de Oswaldo Lamartine, revela a grandeza desse que é considerado o maior etnógrafo-contador das histórias do sertão que já passou pelo Rio Grande do Norte.

Na Natal de 15 de novembro de 1919, abriu os olhos para o mundo. Mas a sua raiz secular fora fincada no sertão, nos chãos de pedra do Seridó, assegura Vicente Serejo¹. No final da década de 40, quando Oswaldo começou a publicar seus escritos, José Lins do Rego, surpreso com o estilo do jovem, falou: “... muito teria que aprender com o jovem ensaísta riograndense do norte”. Sobre ele, muitos outros também comentaram. Câmara Cascudo lhe era íntimo, chamava-o por ‘Oswaldinho’ ou ‘sobrinho honoris causa’ e certa vez escreveu: “esculpido em pau-ferro, ágil por dentro e por fora”.

Para Rachel de Queiroz, Oswaldo que havia cooperado na adaptação para TV do “Memorial de Maria Moura”, era o “anjo magro” que no Brasil, mais entendia de Sertão e de Nordeste. E Gilberto Freyre, acertadamente observou: “em torno de assuntos nordestinos se tornaram mestres Luís da Câmara Cascudo e Oswaldo Lamartine”.

Amante da literatura sertaneja, sua introdução ao mundo do saber se deu com a professora Belém Câmara. A fase da adolescência e juventude passou-a nos Colégio Pedro II, no Ginásio do Recife e no Instituto La-Fayette, no Rio de Janeiro. Como um chamado da terra, ingressou na Escola Superior de Agricultura de Lavras, onde em 1940 tornou-se técnico agrícola. Casou, teve filhos e netos. Foi professor da Escola Doméstica de Natal, da Escola Técnica de Jundiaí e até pracinha durante a Segunda Guerra Mundial. Junto com a década de 50 veio à mudança para o Rio de Janeiro e lá, passou a ser funcionário do Banco do Nordeste do Brasil em 1955, permanecendo até se aposentar em 1979. Depois de 38 anos no Rio, refugiou-se na Fazenda Acauã, município de Riachuelo, com seu cachorro “Parrudo”. Lá, morou até novembro de 2005 quando então passou a habitar sua cidade natal, Natal.

Empossado em 2001 como membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – na cadeira 12, que outrora fora ocupada por seu pai e por Veríssimo de Melo, e cujo patrono era Amaro Cavalcanti –, Oswaldo foi, dois anos depois, agraciado com o título de Pesquisador Emérito, pela Fundação Joaquim Nabuco (PE). Em 16 de novembro de 2005, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa.

Filho do ex-governador Juvenal Lamartine de Faria e de Silvina Bezerra de Faria, o Doutor Honoris Causa de Acauã por algumas vezes, assim se apresentou: “sou sobejo da seca de 19, o último de uma ninhada de dez”.

Certa vez, esse apreciador de armas e homem organizado, tomou os passarinhos que o amigo Monsenhor Expedito criava e libertou a todos eles. Nunca se interessou por política e costumava plantar árvores em homenagem aos amigos. A respeito das amizades, discorreu: “A balança do julgamento dos amigos costuma ser manca”.

Enquanto homem das letras, tudo quanto pôde, ele aprendeu e apreendeu na Escola do Sertão - um mundo que outrora espiava, pisava e não via. Sobre o solo sertanejo, Oswaldo conheceu Bernardo Cintura e Moça Caetana, os nomes pelos quais são chamados, respectivamente a fome e a morte. “O que botei no papel foram apenas momentos do dia-a-dia do nosso sertanejo. Convivi com alguns deles debaixo das mesmas telhas”. Ao longo de 87 anos, edificou uma vida de histórias alicerçadas nos Alpendres d’Acauã, nos Ferros de Ribeiras, nos Arreios do vaqueiro, na Faca de ponta, nas Abelhas do Seridó, na Pescaria de açudes e no Sertão do nunca mais surrupiado pela “terraplanagem cultural da eletricidade, da eletrônica, das estradas, dos meios de comunicação”.

Apesar das mudanças, em Oswaldo, o Sertão é onipresente. “O Sertão é mais que uma região fisiográfica. Além da terra, das plantas, dos bichos e do bicho-homem – tem o seu viver, os seus cheiros, cores e ruídos. O cheiro da água que nos desertos também cheira. O da terra molhada, do curral, da lenha queimada e de cada flor. O belo-horrível-cinzento dos chãos esturricados, o ‘arrepio-verde’ da babugem, a explosão em ouro das craibreiras em flor. Os ruídos dos ventos, das goteiras, do armador das redes, o balido das ovelhas, o canto do galo, o estalo do chicote dos matutos, o ganido dos cachorros em noite de lua, os tetéus, o dueto das casacas-de-couro, os gritos do socó a martelar silêncios, os aboios, o bater dos chocalhos, o mugido do gado e tantos outros que ferem nas ouças da saudade”, conta.

Em 2007, quando a lua reinava em meio às estrelas na noite de Natal, Oswaldo Lamartine de Faria bateu com os olhos nas paredes do céu.



Matéria publicada na íntegra na Revista AJUFE de Cultura. N°6, nov. 08
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Giovanni Sérgio

Saiba mais: ¹GOMES, Vicente Alberto Serejo. Oswaldo Lamartine de Faria: o doutor de Acauã. Preá: revista de cultura. Natal, n15, p.12-16, nov./dez. 2005. http://cidadedosreis.blogspot.com/2007_12_01_archive.html
http://poemia.wordpress.com/2008/05/15/o-lorde-da-acaua-oswaldo-lamartine-de-faria/
http://canais.digi.com.br/noticias/2007/03/30/morre_o_sertanista_oswaldo_lamartine

terça-feira, 6 de janeiro de 2009

NALVA MELO – A SOCIÓLOGA URBANA QUE É UM MUNDO DE OUVIDOS


No dia 14 de fevereiro de 1970 nascia em Natal, na Maternidade Escola Januário Cicco, Irinalva Melo da Silva. A família era de Lajes, morava em uma fazenda, mas complicações no parto quiseram que o primeiro choro da menina fosse derramado na Capital. De volta à terra dos pais, transformou melancia em boneca, viu o sangue escorrer das mãos enquanto apanhava algodão e comeu rapadura acreditando ser confeito. Aos seis anos de idade, mudou-se de vez para a cidade onde nasceu. Nas Quintas aprendeu a pegar morcego no trem, na Praia do Meio tatuou o corpo, no Instituto Kennedy se preparava para o magistério, quando a Banda Gália passou e carregou a menina com os livros na mão. Foi ao show da Blitz na Redinha, encrencou com o corpo magro, conheceu o cigarro, disse que nunca iria casar e num arroubo juvenil quis ter uma produção independente. Com as irmãs, de tanto tentar, um dia ela conseguiu realizar o primeiro corte de sucesso e Irinalva, ficou no passado – um nome estranho na lista de chamada da professora de literatura infantil. Agora ela é Nalva Melo e sua fábrica de sonhos tem endereço certo: Avenida Duque de Caxias, 110, Ribeira, Edifício Bila.

“Eu não era menina de casa, eu era menina de rua”

Nas lembranças de Nalva Melo, Lajes lateja. Não necessariamente a cidade, mas a fazenda Ameixa onde a menina passou os primeiros anos de vida e pra onde retornava na época de férias. Foi lá que o espírito livre dela encontrou terreno fértil. “Eu não era a menina de ficar dentro de casa brincando”. Sempre muito danada e curiosa para os padrões dos pais e dela mesma, aprendeu cedo a andar de bicicleta e na época da colheita do algodão, munida de bizaco e ainda que ferisse as mãos, participou de muitas corridas para ver quem apanhava mais a fibra.

Muito criativa, até porque as condições econômicas não permitiam excessos, Nalva sonhava com uma boneca – nem que fosse um exemplar de plástico –, mas nunca via seu desejo tomar ares de realidade. Inconformada com a situação, às vezes apanhava uma melancia e dava um trato todo especial na fruta. “Eu pegava a melancia e fazia boquinha, olhinho, enrolava num pano e ficava brincando. Era a minha boneca. E o meu pai ficava puto porque eu estragava as melancias”.

Chegando à Natal foi morar no bairro das Quintas e em meio a Rua Potengi, recortada por trilhos, aprendeu a pegar morcego no trem, soltar pipa, jogar bola e roubar sal dos comboios. A proximidade do mangue também deu vazão à outra de suas traquinagens: aproveitando a maré seca, Nalva e alguns colegas da rua quebraram a corrente de uma canoa que estava ancorada e quando a maré encheu, a embarcação foi desaparecendo ao mesmo tempo em que o pescador, indignado, buscava os culpados. “Arrependo-se até hoje disso que fiz. Depois que me entendi de gente percebi a maldade daquela brincadeira, afinal era o instrumento de trabalho de um homem”.

O porquê de tanta danação, nem Nalva sabe ao certo explicar. “Talvez fosse pra chamar atenção. Eu sempre fui totalmente diferente das minhas irmãs. Eu não me sentia uma pessoa especial no meio da minha família, acho que porque eu era muito rebelde”.

“Ela nasceu com o dom de ser mãe”

Dona Maria de Lourdes de Melo fez uma exigência quando as filhas nasceram: “Minha mãe queria todo mundo no ‘I’”. E dessa idéia se originou o nome Irinalva. A segunda de quatro filhas, diz que como mãe, nunca viu igual à dela e tão intuitiva. D. Maria fazia crochê, pintava, cortava cabelo e provocava o imaginário das meninas. “Eu herdei da minha mãe a capacidade de transformas as coisas”.

Em época de seca no interior, D. Maria ia lavar roupa no tanque e como companhia, levava Nalva e as irmãs, que ficavam sob uma tenda. Quando a fome apertava, a solução era o confeito e a balinha dessas horas era rapadura. Mas o doce trazia consigo a sede e na falta de água, a mãe dizia: “Engula a saliva que mata a sede”. Nessas horas, Nalva só pensava: “Como, se nem saliva tem? Meu Deus, será que vai matar mesmo a minha sede?!”

Quando ocorreu a separação dos pais, a responsabilidade bateu a porta e o alimento algumas vezes faltou. Durante uma Páscoa, o pão era escasso e D. Maria logo improvisou: juntou as meninas em volta da mesa e lhes contou da última ceia de Jesus, dividindo entre elas a comida que havia. “Na verdade, acabou matando a nossa fome. Não pelo alimento, que era pouco, mas pela história. Isso eu não esqueço da minha mãe”.

“Ele era a minha referência. Ainda é: ele está em mim”

Seu Francisco Garcia da Silva tinha certeza de que seria pai de um menino. Ora, se o primeiro filho foi mulher, o segundo devia ser um macho. Mas a lógica não funcionou e a prova disso é Nalva. Com toda a sua feminilidade, a dona dos olhos amendoados mexeu com o coração do pai e seu comportamento espevitado fez com que Seu Francisco a elegesse o homem da casa.

No tempo que passaram afastados, devido ao divórcio, Nalva sempre lembrou do pai – um homem vaidoso, que tinha muita garra e queria viver bem, vencer na vida. “Eu sempre lembrava do meu pai. Eu tenho dele a vontade de ver as coisas acontecendo, a determinação. Eu era a única que ele chamava pra dar um cafuné, pra contar as coisas... Quando ele comprou a primeira televisão não agüentou e veio me dizer. A gente tinha uma afinidade bacana”. E uma relação assim, o tempo não destrói.

O último encontro dos dois foi na comemoração do aniversário dele. Bastante bebida, bode, uma festa como Seu Francisco gostava em Lajes. Quando o fim da noite se aproximava, a despedida inevitável transcorreu entre lágrimas. “Me bateu uma sensação de que ia acontecer algo com meu pai. Vim para Natal chorando compulsivamente e ao chegar aqui fiquei ligando em busca de notícias. Exatamente 40 dias depois disso, meu pai morreu”.

“Peraí, eu sou linda!”

Quem vê a desenvoltura dessa artista das tesouras, não percebe que o corpo esguio foi uma fonte de problemas durante muito tempo na vida de Nalva. “Eu me achava magra demais e nunca ia à praia de biquíni. Eu inventava modelitos. Não me aproximava dos meninos porque me achava horrorosa. Para perder esse complexo, precisei ser mãe, Iuri já estava com dois anos quando eu me olhei no espelho e me dei conta: ‘Peraí, eu sou linda!’”. A partir do dia em que a lagarta criou asas, foi por terra a dificuldade em encontrar namorado. “As pessoas nos vêem como a gente se apresenta e eu me apresentava cheia de defesas, com medo de ser observada. Depois da mudança, eram tantos namorados”, revela entre risos.

“Eu queria uma produção independente. Tu acha? Coisa de quem é jovem mesmo”

Bebidas alcoólicas, amigos alcoviteiros, Baile das Kengas, um homem disposto, uma mulher jovem e nada de contracepção. Com um enredo desses, o espermatozóide encontrou o óvulo, ocorreu à fertilização e a gravidez aconteceu na vida de Nalva Melo.

Depois que o carnaval passou, a menstruação não chegou e o exame realmente confirmou, o nervosismo em ter que revelar ao até então amigo seu novo status – elevado a pai –, foi vencido. “Foi péssimo porque ele duvidou. Aí eu falei: não, mas tudo bem. Essa produção eu quero independente. Só quero lhe comunicar que você é o pai”.

Depois da surpresa inicial, o casal ficou junto por um período. “Foi bacana no tempo que aconteceu”.

“Eu quero um filho de libra”


Com um histórico de relacionamentos não muito amistosos com pessoas do signo de escorpião, quando gestante a maior preocupação de Nalva era o filho nascer no final de outubro, data em que a gestação chegava ao fim. Para que essa “desgraça” não ocorresse, sobrou para os gnomos garantir que o filho fosse libriano. “Eu pegava um monte de gnomos e colocava em cima da barriga, aí dizia: nasça logo, um pouquinho antes. Eu mereço um filho de libra, eu quero”. Gnomos ou não, alguém ouviu as preces e Iuri nasceu numa quarta-feira, às 16h30, numa lua nova do dia 19 de outubro de 1993.

“No dia que o Brasil ganhou independência, eu perdi a minha”

Dizem que o primeiro beijo a gente nunca esquece e a experiência de Nalva reforça o ditado. Na idade aproximada de 11 anos, havia um menino na rua Potengi que povoava os sonhos da infante. Ela considerava ele lindo, mas ele nem imaginava os efeitos que provocava naquele coração tímido até que um dia, uma coleguinha de Nalva entregou o jogo. Foi quando garoto se aproximou e sapecou um beijo na bochecha de Nalva Melo, para logo em seguida sair correndo e deixar a menina feliz da vida andando pela linha do trem. “Eu lembro até hoje aquela coisinha gelada na minha bochecha. Fiquei: ai meu Deus, Ele me deu um beijo!” Já o tal beijo francês não recebeu a mesma acolhida: “Meu primeiro beijo de boca foi péssimo. Ahrr, eu não gostei”.

O que Nalva tem gostado nos últimos cinco anos é da companhia de um brasiliense com quem divide casa e coração. O romance começou doce, com uma porção de mel Esperança que Nalva e outras amigas tomaram antes de ir à uma festa, na esperança de descolar um amado e afastar a ressaca. O recurso deu tão certo que num dia chuvoso, Jefferson foi convidado para passar um fim de semana na casa da namorada. “Eu lembro dele levantando a mala pesada e eu pensando: O que eu estou fazendo com a minha vida? Eu acho que já estava sentindo que aquela mala não ia mais voltar”, entrega sorrindo e completa: “Isso fez cinco anos. No dia que o Brasil ganhou independência, eu perdi a minha. Era sete de setembro”.

“Quem trabalha Deus ajuda”

Aos dezesseis anos e em busca de uns trocados pra tocar a vida, Nalva deixou o primeiro trabalho em um jardim de infância e foi ser manicure, ainda que sem muito talento, no centro da Cidade. Suas atenções, entretanto, eram voltadas a tesouras e cabelos e a toda hora estava ela ao lado da cabeleireira. Em casa, começou a cortar o cabelo das irmãs e certa vez sua irmã mais velha ficou uma semana sem ir ao colégio em decorrência de um corte executado por Nalva. Tanto tentou que um dia, teve um corte reconhecido e copiado. “Minha irmã Neide pediu que cortasse os cabelos dela e eu fiz um cabelo curto de um lado e comprido do outro. Passaram-se uns dias, chegou uma cliente no salão e elogiou o cabelo: ‘- Ai que cabelo lindo. Eu quero o meu igual’”. A moça das unhas iria estrear finalmente como cabeleireira. “Eu saí da mesinha de manicure me tremendo. Minha nossa senhora, e agora?” Ela não parou mais.

Em 1990 surgiu a oportunidade de trabalhar em uma campanha política. Em 1991 veio o convite da TV Tropical para trabalhar na emissora e lá, foram três anos e seis meses de atividades em três horários. “Eu chegava às 6h, maquiava, operava teleprompter e saia às 7h30. Voltava às 11h e saia às 13h30. Finalmente ia às 18h e saia às 20h. Nesses intervalos, eu ia atender cliente em domicílio e como ainda não era motorizada, eu andava de ônibus. Tinha dia de pegar oito ônibus”. Foi aí que a televisão da sua casa se transformou em moeda de troca e deu lugar a uma mobilete. “A mobilete era ruim, vivia dando problema, mas me levava pros lugares”.

No exercício da profissão, além de aperfeiçoar a técnica, Nalva que nunca freqüentou curso profissionalizante de cabeleireiro passou a ser reconhecida pelo seu estilo. “Quando olho para alguém, sempre quero trazer um pouco de leveza para o rosto das pessoas. E eu tenho um público muito jovem e alternativo como jornalistas e artistas, além de senhoras de espírito jovem. Então, eu aproveito”.

“No meu salão eu atendo desde pastorador de carro a Governador do Estado com o mesmo tratamento e o mesmo preço”

Em 1994 Nalva descobriu a Ribeira e virou dona do próprio negócio. “Quando cheguei aqui, enlouqueci com o tamanho do lugar e o preço”. Nos primeiro meses, ela chegou a ter um sócio que depois de falcatruas, incendiou o salão. Nalva então ficou sozinha e com medo. “Achava que não dava conta, era uma responsabilidade enorme, mas foi tão legal! Várias pessoas me ajudaram e uma coisa que eu não tenho é preguiça de trabalhar”.

Além dos clientes conquistados, Nalva ganhou outros tantos: da Tribuna, do Itep, da Associação do Ministério do trabalho... E todo o dinheiro que entrava no espaço era investido nele. Nessa fase inicial, o salão se assemelhava a outros tantos recantos de estética espalhados pela cidade e recebeu o nome Nalva Melo Cabelos e Beleza. Os poucos móveis boiavam no prédio que um dia abrigara o BANDERN e serviço não rareava.

Depois de um encontro com o artista Marcelus Bob, em 1998, Nalva teve a idéia de realizar uma exposição pra chamar às pessoas até o salão. A partir desse dia, os eventos não pararam mais de ocorrer e com a revitalização do Largo, os amigos fizeram do ambiente um ponto de encontro e enquanto esperavam a hora de descer para a Rua Chile, ficavam por lá tomando um café de garrafa.

A guinada começou no ano de 2000, durante uma viagem à Áustria onde Nalva representou o Brasil com suas perucas de sisal e descobriu os cafés vienenses. “Quando vi aquilo, pensei: eu tenho um espaço onde posso fazer uma coisa dessas. Aí quando voltei fiz uma exposição com as fotos da viagem e um show de Pedrinho Mendes. O Café estava nascendo”. E quem já se aconchegou no puff gigante revestido de chita, foi recebido por Nalva e seu estilo All star, escutou a música de Chico Buarque enquanto planejava o corte do cabelo, bebericou uma cerveja assistindo um clássico italiano, sentou na cadeira de barbeiro pra curtir uma apresentação teatral ou aproveitou o tempo da tinta no cabelo para saber qual a novidade política ou cultural da cidade, sabe bem o que é o Nalva Melo Café Salão. “Foi a melhor coisa que eu fiz. Foi o grande boom da minha vida profissional e como espaço de trabalho”, orgulha-se a inventora.

Incorporando estilo retrô, no Salão os objetos têm memória e há uma penca deles. Há cartazes de filmes; luminárias adequadas a poste; cadeiras do Cine Panorama; um rádio transmissor; máquinas de costura catadas em brechó; mesinhas de cabeleireiro feitas em São Gonçalo por um senhor que trabalha com torno; biombo feito de portas abandonadas; cadeiras de caixas da Telemar; cristaleira e até uma geladeira cor de rosa que veio em uma carroça do bairro do Alecrim, carregada por um burrico.

De tão aconchegante, o Nalva Melo Café Salão foi cenário para revistas de moda, capa de Cds; palco de aniversários, batizado e até o casamento da atriz Quitéria Kelly. Também já serviu de camarim para o grupo Los Hermanos, Pitty e João Gordo e por lá, muitos políticos da cidade tem circulado. Como se não bastasse, virou espaço para performances culturais e se hoje oferece música aos domingos e cinema às sextas, já faz um tempinho que Nalva passou a ser identificada como Produtora cultural. “Eu acho que é porque eu gosto de festas. Eu só fiz receber os amigos como eu já recebia, mas agora de uma forma legal, tendo cervejinha, um uísque, um café expresso, mesas pra sentar...”

Para 2009, aguardem festas. O Nalva Melo Café Salão completa 15 anos e sua administradora promete um grande debut. “Quero fazer uma retrospectiva de tudo que rolou: música, teatro, artes plásticas; livro, poesia...Vai acontecer durante todo o ano e os clientes podem esperar novidades”.

“Eu morava a 200 metros do supermercado e parecia que morava a milhões de quilômetros”

Angústia, irritabilidade. No final de 2004, Nalva não era a mesma. A carga exaustiva de trabalho somada a problemas emocionais levou à sua vida a Síndrome ou Transtorno do Pânico – um problema sério de saúde que atinge de 2 a 4% da população mundial. No período da doença, que atingiu o sistema nervoso, Nalva passou por tratamento psiquiátrico e apesar do seu apreço pelas festas, ficou afastada da vida noturna por uns dois anos, pois o convívio com muitas pessoas se tornara desagradável.

Durante uma crise, Nalva estava no supermercado que ficava próximo a sua antiga casa. “Eu sai de lá correndo para minha casa, largando tudo. Eu não agüentava mais aquele cantor lá em cima cantando, as pessoas batendo no meu carrinho e parecia que eu não ia mais chegar em casa. Eu morava a 200 metros do supermercado e parecia que morava a milhões de quilômetros. Eu queria entrar em casa, não queria que ninguém falasse comigo”, relata.

Depois da tempestade, chegou a bonança: “Eu acordo cedo, levo meu filho até a escola, atendo a Chefe da Casa Civil e desço para o Salão”. “Encontrei uma casa em Pirangi e nos finais de semana meus amigos não faltam. É um ambiente muito gostoso, cheio de fruteiras e onde eu fico contemplando o quintal.”

“Eu sou D-e-t-e-r-m-i-n-a-d-a”

Determinada, cervejeira e fumante inveterada quase chegando aos “enta”, no aniversário do ano passado, um galo se agregou a sua vida e a dos cachorros Tobias, Laica e Scooby. “Esse galo canta de manhã e no final da tarde. Já tentaram até matar, mas eu disse que esse galo só vai morrer de velho”.

Com planos de viajar para se abastecer de sonhos, Nalva Melo é a única senhora do seu destino. “Todas as coisas que desejei, eu me empenhei e realizei. Sou feliz fazendo muitas coisas. Cortando cabelo encerro sonhos; maquiando me fiz uma socióloga; inventando festas virei produtora; interagindo com artistas descobri o sisal. Sou um mundo de ouvidos! Tá ótimo!!”




Matéria públicada no jornal O Poti. Natal, 28 dez 2008.
Texto: Maísa Carvalho
Fotos: Elisa Elsie

UM COMEÇO

Dizem que tudo na vida precisa de um começo. Eu já passei por alguns e esse é mais um. Essa é a minha tentativa de escrever, escrever e escrever de um modo periódico e assim aperfeiçoar essa técnica e tentar ser uma jornalista melhor. Os textos devem versar prioritariamente sobre perfis, porque eu gosto de gente. Eles também devem versar sobre os lugares onde as gentes vivem e constroem seus mundos. Nesse balaio, talvez haja espaço para falar em costumes, fotografias, impressões, filmes. É provável que apareça um poema ou outro e quem sabe contos. Vamos ver... Boa viagem.