terça-feira, 31 de maio de 2011

LEMBRANÇAS

Dizem que recordar é viver. E não é que procurando ouro encontrei prata? Explico-me: pesquisando para o MBA, deparei-me com um texto que escrevi em 2008. São lembranças, algumas das minhas caras lembranças. Aí, resolvi publicar (na íntegra). Segue:

"Discuti Schopenhauer e toda sua vontade e representação em espanhol, pleno domingo de manhã, na praça de alimentação do Via Direta, com os melhores colegas de faculdade que alguém poderia ter.


Varei madrugada no Cefet (Tati que o diga), usufruindo do computador da coordenação de curso, terminando o tão precioso trabalho de final de semestre. Fiz artigos pra revistas, escrevi pra livros e quis mudar o mundo.


Participei da fundação de um DCE e fui diretora de comunicação de um DCE. Vi muita gente querendo roubar e não é que alguns roubaram? (dizem...eu não sei de nada!).


Peguei 3 dias de rodovia dentro de ônibus, tomei banho em posto, almocei em restaurante de beira de estrada. Fui à encontros de estudantes e inúmeros congressos. Dormi quase no chão, porque meu colchonete tinha só nome. Já acampei também, só que no quintal de casa. Isso conta, né?


Participei de noitadas incríveis em padarias, meios de ruas, calçadas e praças, entre gente de todos os cantos. Fui "cameloar" na 25 de março e comprei uma pranchinha pra deixar o cabelo liso. Só não diziam que além de liso, ficava estragado também!


Curti tributo a Raul Seixas, pensando "O que eu estou fazendo aqui?" Fui ver Belchior pra cantar "Eu sou apenas um rapaz, latino-americano sem dinheiro no banco..." e depois rir com a idéia de: "Foi por medo de avião, que eu segurei pela primeira vez a sua mão..." Em troca de 1kg de alimento não perecível ou cinco paus, ganhei muitos domingos e dias da semana com Chico César, Oswaldo Montenegro, Yamandu, Ginga, Ana Botafogo, Vanessa da Mata, Zeca Baleiro, Cordel do Fogo Encantado, etc, etc, etc.


Já ouvi muita música instrumental. No começo - preciso confessar - aquilo dava uma agonia, era um se mexer pra lá, pra cá... Até captar a maravilha de Chopin, o conhecidíssimo Bolero (de Ravel) e entender aqueles sons todos de Piazzolla, Vivaldi, Tira Poeira e companhia ILIMITADA. Paguei a melhor disciplina que pode existir na UFRN: Música Popular Brasileira. Uma vez por semana um milagre acontecia e eu não me atrasava pra aula. As manhãs de quartas-feiras eram mais felizes. Valsinha, polca, choro, samba, rock, bossa, tropicalismo... Ai que saudades!


No parque (Como eu amo um parque de diversão! Detesto aqueles adultos que olham pra mim e falam: " Parece que não teve infância." Ah, vão ver se estou na China.) Mas, voltando... No parque, já fiz medo em quem ao invés de curtir os brinquedos rezava Ave Maria e Pai Nosso pra não cair de ponta cabeça.


Já sonhei tanto, sonhos meus e dos outros. E hoje, quando passo por situações que outros sonharam, penso nas pessoas que me são caras e já se foram.


Carreata em tempo de política? Lá estava eu tb. Dancinhas coreografadas dentro do carro, cantar música bemmmmm altoooooooo e rir muito... De tudo, de nada :) Apostar corrida com os amigos pelas avenidas vazias e dizer ao tempo e ao vento: "Já disse que te amo hoje? Eu te amooooo".


Já andei com uma amiga de moto táxi. Escapei de um incêndio fictício num hotel e me perdi em Miami. Vez por outra aporto na Tropical em busca de um sorvete e reviver a infância. É lógico que o homem da rabeca tem que estar lá, caso contrário não tem graça.


Já ganhei dois presentes de amigo secreto porque se confundiram e não sabiam mais quem tinham tirado. Já levei susto dos amigos em Acari, enquanto vislumbrava o Gargalheiras e eles invadiram o quarto pela varanda.


Já busquei o frio em Martins e tentei enxergar desenhos nas pedras. Até agora estou procurando o rosto de Cristo que o povo dizia "Ali. Você não está vendo?". Confesso que acho mais prático ver figura nas nuvens.


Passei madrugada na Fortaleza dos Reis Magos. Vinho, céu, violão, lua abençoada, planetas, estrelas e observação do espaço com a turma de Física. Amanhecendo, que cenário lindo.... A lua se indo, o sol se aprochegando.


Assisti a muito luar do sertão e pelo amor de Deus, é lindo demaissssssssssss da conta. Igual ver vagalume de noitinha, embaixo da árvore onde ficava meu balanço no sítio do meu vô; assim como fogueira em noite de São João; sorriso de criança; lágrimas de felicidade no rosto dos pais; deitar em frente árvore de Natal e tentar adivinhar qual é o meu presente.


Ei, esperei o presente do Papai Noel muitas vezes na praia e ele nunca decepcionou. O presente sempre aparecia debaixo da cama. E era também na praia que achávamos de ver alma e que numa noite reunimos os primos para assistir ao Exorcista - pura tensão no ar.


E no dia em que roubaram o peru do freezer? E o Bloco da Porta no carnaval que só tinha nós e a porta e nós íamos passando ao som das marchinhas eternas? E ao menos uma noite era certa a invasão da casa de praia pelo meu tio tocando trompete. Mas, isso foi depois... quando já éramos crescidos e não nos escondíamos mais do Boi e dos Índios.


Disseram-me que "trocamos" de amigos porque nossos interesses e os deles mudam. E sabe o que é pior? Eu acreditei. Até o dia em que descobri que não preciso mudar de amigos se entender que eles mudam.


Tomei tanto banho de perfume (pense numa menina sem noção) que dei muita dor de cabeça aos colegas de colégio. Teve um dia que o maldito Lou Lou derramou na mochila. Deus me livre e guarde.


Também tomei muito banho de chuva. Quer saber? Ainda tomo. Mas é segredo, tá? Mainha continua reclamando, enquanto painho continua a dizer que não faz mal.


Não suporto cigarro perto de mim e com delicadeza (até parece), solicito ao deselegante que pare de fumar ao meu lado. Apesar disso, já fumei charuto e cigarrilha. E não me venham com "mas, mas". Foi bom! Mas, isso só entre amigos, uma vez ao ano e não viciou.


Ah, são tantas coisas. Por hora está bom, pois tenho que terminar outro texto. Dessa vez, o texto é do trabalho."



segunda-feira, 23 de março de 2009

O MELHOR DO NORTE-RIOGRANDENSE PAPA JERIMUM

Potiguar ou potiguara é o nome de uma grande nação tupi que habitava a região litorânea do que hoje são os estados do Rio Grande do Norte e da Paraíba. Em tupi quer dizer "comedor de camarão" e se tornou a denominação de quem nasce no estado norte-riograndense.

“Traga a vasilhaaaaaaaa. É o picolé caseiro de Caicó na sua rua, na sua porta.” A frase é repetida a exaustão pelos bairros da Natal e sua lembrança já faz o potiguar abrir um sorriso. Nada mais é do que um picolé que leva o nome de uma cidade distante a 280 quilômetros da Capital que é famosa não só por seu picolé, mas muito, muito mais pela carne de sol, o queijo e o rico artesanato. Coisa assim, só potiguar entende. O mesmo ocorre quando deixamos a língua portuguesa de lado e em seu lugar, adotamos a linguagem papa jerimum. Aí danou-se. É um tal de caritó, pitôco, incherida, fulêro, arrudear, invocado... Mas com jeitinho, a gente vai explicando: “Cabra posudo é gabola, otário é abigobel, o chato é galado e puxa saco, xeleléu. Tudo que é bom é massa, é arretado, é primeira. Tudo que é ruim é peba, mas também pode ser reiêra. Botão de som é pitôco, mulher solteira é caritó, a galinha é incherida e lança perfume é loló. Pernilongo aqui é muriçoca, chicote se chama açoite. Tá (sic) com raiva, tá invocado, quem entra sem licença, imbioca e sinal de espanto é vote.” Esse dialeto praticado na informalidade é um dos muitos costumes de quem vive no Rio Grande do Norte.

Potiguar nascido em Natal sorri e faz coro quando escuta os acordes da música de Pedrinho Mendes, Linda Baby, e concorda com o que diz a canção “Essa é uma terra de um deus mar, de um deus mar que vive para o sol...” Mas potiguar também se cala para ouvir a nossa música mais tradicional, Praieira “Praieira dos meus amores, encanto do meu olhar...” Composta por Othoniel Menezes e Eduardo Medeiros, a canção fala sobre um grupo de pescadores natalenses que resolveu partir a remo, em 1922, para o Rio de Janeiro, a capital do país a época.

Por aqui no mês de junho, todo mundo dança quadrilha e não é das organizadas, é aquela gerada em meio à diversão, no improviso. Junta-se um grupinho e lá estão todos em meio a “alavantús”, “anariês” e “balances”. Difícil por essas ruas é encontrar um natalense com mais de vinte anos que não nasceu na Maternidade Januário Cicco ou ser apresentado a alguém que nunca assistiu a apresentação do Pastoril, torcendo pelo cordão azul ou pelo “encarnado” (vermelho).

É uma gente religiosa, de tradição católica (especialmente em dias de festa de padroeira) que faz sinal da cruz ao passar por igrejas, vai às missas de cura, ora pro santo de devoção e na infância aprendeu a rezar “com Deus me deito, com Deus me levanto.”

Sob a Pedra do Rosário, em meio ao Rio Potengi e o mar, o natalense encontrou o pôr-do-sol mais lindo do mundo. Conhecido pela hospitalidade, o potiguar é acolhedor e sempre pergunta ao turista de primeira viagem: “– Já conheceu Ponta Negra? E o Morro do Careca?” Capaz de absorver culturas dos povos de todos os cantos que passam por aqui, é um povo feliz que adora comer camarão e no fim da tarde anda no calçadão da praia de Ponta Negra e toma uma água de coco. Nos finais de semana vai à praia, muda-se com a família para a fazenda, passeia nos shoppings, aporta na Redinha para saborear ginga com tapioca, leva os filhos aos parques, corre em vaquejada, lancha na Pittsburg (famosa sanduicheria de Natal), vai a um show e pega um cineminha sempre reclamando da pouca opção dos filmes.

Potiguar dorme em cama e em rede. Fica balançando nas varandas pra lá e pra cá e é um povo que consegue transformar espaços de sua rotina em ponto turístico. Um exemplo disso é a Ponte Newton Navarro. Observando um pouco, vemos os mesmos carros passando de um lado para o outro, com seus motoristas contemplando a paisagem ao redor.

Quando busca o melhor preço, o potiguar não titubeia e foge dos shoppings. Nessas ocasiões, lá vai ele bater perna pra cima e pra baixo, nos centros comerciais dos bairros do Alecrim e de Cidade Alta. O que se diz é que de tudo um muito se encontra por ali. O negócio é ter paciência e pesquisar...

As praças dos bairros e as cadeiras nas calçadas já foram substituídas há muito pelas praças de alimentação e em cada esquina da cidade prepare-se para encontrar um supermercado. Tem aqueles de cadeia nacional, internacional, mas natalense que se preze, pesquisa e é fiel ao supermercado que herdou a preferência dos seus pais. Entretanto, as feiras de rua ainda têm lugar, dia e público garantido. De domingo a domingo vemos senhoras carregando suas amplas sacolas e homens pechinchando. Rolete de cana, tapioca de coco, cuscuz de milho, cajá, mangaba, pitomba, cioba, cavala, preá, celular... se é produto que se vende ou troca, nas feiras de Gramoré a Lagoa Nova, você vai encontrar.

O forró é uma paixão no Nordeste e por esses lados não poderia ser diferente. O ritmo musical encanta muitos natalenses, mas mesmo com o sucesso do forró eletrônico a preferência entre o povo é o tradicional pé de serra – aquele onde um trio composto por zabumba, triângulo e sanfona entoa canções que falam do sertão, de amores e saudades. Todo final de semana e até durante a semana tem um lugar pra se dançar. Mas atenção! Passar a parceira por baixo da perna e fazer outros malabarismos na pista de dança não voga nos salões locais. O jeitinho de dançar potiguar, é o popular rela-buxo, dois passinhos pra lá, dois pra cá, com damas e cavalheiros bailando a base do universal cheek to cheek.

Na cidade pode até existir mais de dois times de futebol, mas pelas conversas no meio da rua e nas discussões acaloradas depois de um domingo no Frasqueirão ou no Machadão, logo se percebe que o coração do potiguar ou é alvinegro ou alvirrubro. Por aqui, cedo se aprende a torcer pelo ABC ou pelo América e se o computador já invadiu as casas, ainda “sobra” espaço para o elástico, a bola de gude que aqui chamamos biloca e as brincadeiras de polícia-ladrão, queimada, bandeirinha e esconde-esconde.

No final do ano, os natalenses se reúnem pra assistir ao Espetáculo do Auto do Natal e quando potiguar se encontra, seja lá em qual lugar for, é aquela festa. Para os íntimos, um abraço apertado, já com os mais formais, a regra aqui é trocar dois beijinhos.

Todo potiguar que deixa Natal para tentar a sorte em cidades e países distantes, volta. Quem vem de longe e conhece, retorna.





Artigo publicado na íntegra na Revista AJUFE de Cultura. N°6, nov. 08
Texto: Maísa Carvalho

terça-feira, 27 de janeiro de 2009

LUÍS DA CÂMARA CASCUDO, O HISTORIADOR DO BRASIL


Natal, século XX. Época em que a Internet e o correio eletrônico não se faziam presentes na vida das pessoas. A casa de número 377, na Avenida Junqueira Aires, em Natal, recebia correspondências freqüentemente. Para seu ilustre morador, Luís da Câmara Cascudo, as cartas eram suporte de pesquisa e fonte de dados para suas obras. Por meio dessas, o intercâmbio de informações e o registro do cotidiano construíram vínculos de amizade para toda a vida.

“Grandes” como Carlos Drummond de Andrade, Luís Gonzaga, Walt Disney, Monteiro Lobato, Juscelino Kubitschek, Henrique Castriciano, Chateaubriand, Jorge Amando, José Lins do Rego, Roquette Pinto, Érico Veríssimo e Mário de Andrade, trocaram com o famoso potiguar saberes e idéias; ensinaram e aprenderam mutuamente.

Nascido aos 30 de dezembro de 1898 na Rua das Virgens, cidade do Natal, a capital do Rio Grande do Norte, Cascudo foi o filho único de Francisco Justino de Oliveira Cascudo e Anna Maria da Câmara Cascudo. Do pai, escreveu Cascudo, subiu lentamente na vida e fora rico para os padrões da época, possuindo uma chácara no bairro do Tirol, que chamavam ‘principado’. “Nossa casa no Tirol hospedou a Família Imperial e Fabião das Queimadas, cantador que fora escravo”, lembrava Cascudo.

O menino aspirou à Medicina, mas quis o destino que ele se formasse bacharel em direito e nunca deixou de escrever. Até pouco antes de sua morte, em 30 de julho de 1986, Cascudo trocou correspondências. Ao longo de seus 87 anos, esse “provinciano incurável” reuniu 15 mil cartas que atualmente se encontram no acervo da família. “Ele tratou de fazer sua obra gigantesca, composta por mais de 150 livros, enviando cartas para conhecidos e até desconhecidos de todo o mundo”, revela sua filha, Anna Maria Cascudo. A fim de viabilizar as informações, Cascudo realizava inquéritos diretos e escrevia cartas aos amigos, usando-as sempre como fontes de pesquisa. Ao escrever seus livros e artigos, não hesitava em recorrer aos companheiros. Por meio de suas “vítimas indefesas”, como costumava apelidar os amigos do Brasil e do exterior encarregados de lhe fornecer informações, a obra “cascudiana” ganhou forma, sotaque e cores.

Uma obra composta por uma quantidade dantesca de livros escritos durante anos de dedicação à busca das origens da cultura popular brasileira. Tido por muitos, como o folclorista mais minucioso e abrangente, são dele títulos como: Alma Patrícia; Dicionário do Folclore Brasileiro; Literatura Oral; Histórias que o Tempo Leva; Vaqueiros e Cantadores; Prelúdio da Cachaça; Rede de Dormir; Jangada; Locuções Tradicionais do Brasil; Superstições no Brasil; Geografia dos Mitos Brasileiros; Meleagro: Catimbó e Magia Branca no Brasil; Geografia do Brasil Holandês; História da Alimentação no Brasil e Sociologia da Açúcar.

Em cada livro, ensaio, revela um misto de Brasil e mundo. Nunca pensou em deixar sua terra, Natal, e para o ex-presidente da República José Sarney, Cascudo foi o grande guardião da nossa brasilidade. “Brasileiro no hábito alimentar, brasileiro no morar, brasileiro ao deitar na rede nordestina, ao contar ‘causos’ de todo o Brasil, ao registrar nossas lendas, nosso folclore.”

Jornalista, etnólogo, antropólogo, historiador, folclorista, não escondia a predileção em ser chamado de professor. Em texto escrito por ele próprio, conta: “Queria saber a história de todas as cousas do campo e da cidade. Convivências dos humildes, sábios, analfabetos, sabedores dos segredos do Mar das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios. Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. Pesquisas. Indagações. Confidências que hoje não têm preço.”

Essa sede de saber, essa busca por respostas e principalmente, a sua afetuosidade humana, fizeram dele um homem querido e admirado. Para representar a cultura brasileira em um dos parques temáticos da Flórida, Walt Disney pediu para Cascudo informações sobre o Brasil e em retribuição, lhe enviou um exemplar do livro Alice no País das Maravilhas. Já Monteiro Lobato, pediu para que seu amigo lhe mandasse características do Saci-Pererê, para compor o personagem. Tamanha era a intimidade entre eles, que Monteiro Lobato certa vez lhe escreveu: “- Minha carta não tem assunto nenhum, é só uma carta para saber como você está.”

Hoje, a trajetória do Folclorista pode ser observada no Memorial Câmara Cascudo e o museu da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, leva seu nome.





Artigo publicado na íntegra na Revista AJUFE de Cultura. N°6, nov. 08
Texto: Maísa Carvalho
Colaboração: Juliana Rocha e Júlia Medeiros
Foto: Juliana Rocha

segunda-feira, 19 de janeiro de 2009

KHRYSTAL E ZÉ DIAS: OPERÁRIOS DA MÚSICA


Ainda saindo do carro, eu escuto: “Você tem quarenta segundos até que o portão (eletrônico) se feche.” Quatro andares acima, eis que encontro uma A4. Em cor azul, está escrito: Casa de Zé Dias e Khrystal. A porta é aberta e a dona da casa me convida a entrar. Em meio à profusão de discos, aparece de bermuda, o dono da voz que havia me alertado momentos antes. Um homem, uma mulher, um casal. Dois operários da música potiguar.

Toda história a dois começa com um encontro. Às vezes ele é planejado, em outras, simplesmente acontece. No caso de Khrystal e Zé Dias, a música foi o ponto em comum desde o princípio. Tudo começou no ano de 2004, quando a amiga de ambos, Raquel Grossman, decidiu que a cantora deveria conhecer o produtor e então, apresentou o casal. O local da troca do primeiro olhar diverge. Ela conta que foi no Solar Bela Vista, ele diz que foi no Hotel Residence, onde morava à época.

Fato é que a primeira impressão não agradou muito Khrystal. “Achei ele grosseiríssimo. A primeira coisa que ele fez foi olhar pro meu decote.” Mas a atenção foi logo desviada quando Khrystal, trajando bermuda, sandália, camiseta e de violão na mão, soltou a voz. A música escolhida era de Nado Reis, All star. Meses depois veio o namoro, o casamento sem papel passado e o filho, Jackson Luiz Brasileiro – uma homenagem a Jackson do Pandeiro, Luiz Gonzaga e Tom Jobim.

Cotidiano

Vida de marido e mulher tem lá suas peculiaridades e nem sempre segue a ladainha do cotidiano. No apartamento transformado em lar, não existe isso de lado da cama. Na hora que o sono bate, o corpo escolhe o melhor lugar para descansar e pode ser na rede, na cama do outro quarto ou na Box enorme que eles compraram porque Zé é muito espaçoso. Na hora de ir pra cozinha, não tem discussão. Zé é o chef. Ele abre uma cervejinha, deixa ali na pia e vai cortando a cebolinha, o pimentão... nessas horas Khrystal provavelmente está tocando violão, escutando música, buscando algo na internet. Sim, porque diferente de Zé que só joga paciência e acessa a conta do e-mail, ela adora baixar música, pesquisar cenário, figurinos e tudo mais que puder levar pro espetáculo.

O gosto por ficar em casa é compartilhado por ambos, assim como o apreço nada saudável, pelo cigarro. Contudo, há uma diferença. Khrystal tem planos de parar, apesar de afirmar que sua relação com o cigarro é de sentimento “é uma relação sentimental, parece que é o sexto dedo”. Já Zé Dias, traçando duas carteiras por dia, não recomenda, porém justifica “Eu vivo muito aperreado. Eu não tenho tranqüilidade financeira e me vingo no cigarro. Descobri que se fumar morro e se não fumar, morro do mesmo jeito.” Bem, ao menos a bebedeira ele deixou e quem recebe o crédito é Khrystal.“Eu deixei de beber, violentamente, por conta dela. Ela que me tirou do vício e eu não gosto quando ela bebe. Dizem que eu faço bem a ela. É mentira. Ela que faz muito mais bem a mim”.

Dividindo coração e profissão, depois de quatro anos de relacionamento, eles conseguem separar a vida pessoal da profissional, mas no começo se atrapalhavam muito. Tanto que Zé Dias fala: “Você unir as duas coisas é muito difícil. Agora, eu só tenho consciência de uma coisa, o que sustenta a relação é o amor.”

Juntos em casa, juntos nos shows, deram vida ao Disco Coisa de Preto e aos que imaginam que a voz do produtor cala a da cantora, Khrystal deixa claro: “Quem manda no que eu faço sou eu. Eu não tenho onde cair viva, mas morta eu caio em qualquer lugar. Quem dá a cara pra bater lá em cima sou eu. Quem tá com o microfone na mão sou eu.” Afirmativa assinada em baixo por Zé Dias. “Ela tem consciência de tudo. Independente de mim, Khrystal dá certo.”




Matéria publicada na íntegra na Revista Brouhaha. N° 12, maio/jun08.
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Evaldo Gomes

ZÉ DIAS

"Eu sou agoniada, mas ele parece que vai morrer de infarto a cada dez minutos"
Khrystal sobre Zé Dias

Ele sonhava em fazer um projeto que contemplasse a música brasileira e como ocorre nos sonhos, havia mais de um caminho a seguir. Renegar suas aspirações ao mundo das idéias não era uma possibilidade, então ele começou a agir e hoje, quem curte a música produzida no Rio Grande do Norte, conhece Zé Dias. Um sujeito grande, habitualmente de bermuda, camiseta, um copo, um cigarro na mão.

Na manhã de nossa entrevista, a mesa estava posta com os segredos para se começar bem o dia: queijo, gravador, suco, listinha de tópicos, café, frutas e disposição. Daí, era só torcer para o i-Pod funcionar corretamente.

O primeiro assunto? A atividade de produtor cultural. Isto porque de domingo a domingo, ele promove o Praia Shopping Musical. Organizar um show é fichinha, mas a história não era bem essa quando há treze anos, às dezoito horas e trinta minutos de uma terça-feira, Natal conhecia o Projeto Seis e Meia. A novidade não era exclusividade da platéia, Zé também estava fazendo descobertas. “Eu nunca tinha feito um show na minha vida. Eu descobri a alegria de trabalhar com 36 anos de idade, a fazer o que eu gosto.”

A estréia foi com Pedro Mendes e Nico Resende e com o tempo, o Projeto foi crescendo, crescendo... o Projeto foi tendo prejuízo, prejuízo... Até que um dia, Fagner tocou no Seis e Meia a custo zero. “Com o dinheiro que nós apuramos em Fagner, pagamos todas as contas e ganhamos um álibi.” Depois desse dia, quando o produtor, desconhecido, ligava para um artista nacional, ele sempre tomava a precaução de esclarecer “– Olhe, Fagner veio.” Com isso, o palco e o público do TAM só tiveram a agradecer. Chico César. Zeca Baleiro. Antônio Nóbrega. Mestre Ambrósio. Rita Ribeiro. Demônios da Garoa. Jamelão e outros tantos lotavam duas sessões. Pode-se dizer que esse foi o período do encontro de Zé Dias com a produção cultural.

Caminhos

Em 1999 partiu em busca do novo. De lá pra cá, produziu o Natal em Canto – que ocorria no América – e conheceu Lane Cardoso, com quem produziu dois discos: um com músicas de Elino Julião e outro com canções carnavalescas. Trabalhou com Rejane Luna e por essa época, chegou à sua vida, Khrystal. Depois disso, foi movimentar as noites da Zona Sul. Em dois anos no Sea Way, foram oitocentos shows. No Praia Shopping, onde está há quase um ano e meio, já são seiscentos.

Quem estiver de bobeira e passar por aquelas bandas pode assistir a apresentação do ouro e da prata musical potiguar. “Eu não preciso buscar lá fora mais ninguém para cantar aqui. Eu acho a produção daqui muito, mas muito boa e acima da média. Mas também tem muita gente ruim, tem uns que eu faço por conveniência da profissão. Agora tem uns muito, muito especiais.” Gente como Pedrinho Mendes. “Eu queria que Pedrinho se convencesse que é o melhor artista desse Estado.”

Emotivo, na hora que o show começa Zé Dias é público, “o produtor vai pro inferno.” O apreço pela música só é menor que a paixão pelo Futebol. É um aficionado “Sou louco por Romário e odeio Dunga e Zagalo”. Em suas referências, mais futebol. Quando pergunto se ele nasceu em Natal, me responde que sim, ali no Alecrim, “pertinho de Marinho Chagas” e continua... Na infância, para além do ambiente da rua, dos amigos, do colégio, “Alberi foi a primeira pessoa que me fez feliz”. Isso porque quando menino, Zé Dias assistiu a uma partida em que lá estava o jogador pernambucano. Apesar de toda fascinação, foi praticando outra atividade em que ele se destacou. Por duas vezes foi goleiro da seleção brasileira de handebol.

Família

Se hoje denomina-se produtor, para as más línguas, é um reprodutor. Tem cinco filhos e nunca conseguiu reunir, de uma só vez, todos eles. Consciente, me diz ser um pai ausente e repousa a esperança no futuro “eu acho que vou ser um bom avô, mas como pai eu sou muito ruim. Eles são melhores do que eu.” Eles são: Vítor; Artur; André; Júlia e Jackson e em cada um, Zé consegue vislumbrar uma fagulha de semelhança, ainda que não se lembre das datas de seus aniversários.

Entre um gole de café, a mordida no pão e o furto, descarado, do abacaxi que repousava no meu prato, vai contando que planeja lançar dois livros. Um abordará sua vida de produtor e os muitos causos; o outro será uma pequena introdução ao carnaval brasileiro. Farão sucesso? Não se sabe. Mas Zé espera que os amigos comprem, a fim de que ele possa realizar um desejo. “Meu sonho de consumo é passar trinta dias em Porto Mirim ou em Jacumã com Khrystal e meus filhos todos.”

Nesse embalo, Zé Dias segue a me apresentar Zé Dias – um homem que tem horror a atender telefone e não curte navegar por mundos virtuais, além da fronteira do e-mail. Alguém que usufrui seu tempo descompromissado em casa, escutando música e detesta que lhe peçam cortesia ou cigarro. “Eu não fumo maconha porque eu viveria brigando com quem me pedisse, porque maconha é o cigarro mais democrático que eu conheço”.

Já na estrada da vida há 48 anos, houve acertos e erros também... Especialmente devido aos excessos, ao uísque. “Eu cometi muitos erros na minha vida porque era alcoólatra.” Hoje, passado. Tempo distante da rotina de quem às sete da manhã, está na rua em busca do pão para manter a música de cada dia. Nessa vida de produtor, ele me diz, “não existe essa palavra ‘férias’. E a palavra mais forte é liseu.”

Decepções? Também ocorrem no meio. A mais recente ele fez questão de me falar, um pouco chateado, ainda. Não entendeu o porquê de Khrystal – pelo volume de trabalho em 2007 e elogios de crítica – não ter ganhado o prêmio de música do Diário de Natal. “O prêmio está se tornando um prêmio de instrumentistas. E a comissão, eu acho que poderia ver mais o trabalho de cantores. É uma comissão julgadora de músicos instrumentais. Porque só ganha instrumentista?”

Entre as amizades e inimizades, uma fã especial: Dona Francisca. A mãe vive preocupada até hoje e diz que a profissão do filho não tem futuro. “E ela tem razão”, adverte ele. Quando a música chegou a sua vida, lá pelos anos 60, 70, ela vinha pela voz materna; pedia passagem pelas mãos do pai, que lhe presenteava com discos – um gesto de aparente contradição.

Falar de família traz lembranças. O ar escapa, os olhos marejam, a voz embarga. “Se ele (José Dias, o pai) tivesse vivo, mesmo sem escutar ele iria a todos os shows. Ele me apoiou muito! O cara ser surdo e comprar disco!? Isso não existe. Como é que ele sabia que disco era bom?”

Explosivo. Apaixonado. José Dias Júnior segue com a certeza de que, enquanto nos movemos, nada é definitivo. Na trilha sonora, qualquer canção de Tom Jobim, executada por João Gilberto. Para a posteridade, a herança dos filhos é coisa certa. “Eles herdarão a história de um cara que trabalhou para a cultura desse Estado. E pra mim isso basta.”



Matéria publicada na íntegra na revista Brouhaha. N° 12, maio/jun.08
Texto: Maísa Carvalho

segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

KHRYSTAL

"Ela é uma invenção de Deus, mas quem administra é o Satanás"
Zé Dias sobre Khrystal

Precisou de muito pouco. Um intervalo de tempo entre “Boa noite” e a primeira canção. Em instantes, toda a platéia do Teatro Alberto Maranhão já confirmava o que a música dizia: sim, ela canta samba. E muito mais.

O dia era treze, do mês do maio. A noite? Faceira, bela, negra. Ia-se já longe um século que no Brasil era assinada a Lei Áurea. Cento e vinte anos depois, Khrystal dava um show. Não em um quilombo, um cárcere ou numa aldeia, mas num palco. "Ninguém ouviu um soluçar de dor no canto do Brasil, um lamento triste sempre ecoou, desde que o índio guerreiro foi pro cativeiro e de lá cantou. Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares, onde se refugiou. Fora a luta dos Inconfidentes pela quebra das correntes nada adiantou e de guerra em paz, de paz em guerra, todo o povo desta terra quando pode cantar canta de dor". Com esse Canto das três raças, fez valer as vozes que construíram o que hoje entoamos "Pátria amada".

Em cena, ora mulher, ora menina. Toda cheia de graça, corpo transformado em extensão de seu canto. Bailou, encantou e só pra ninguém esquecer, arrematou: "quando eu canto estou sentindo a luz de um santo, estou ajoelhado aos pés de Deus. Canto para anunciar o dia, canto para amenizar a noite, canto pra denunciar o açoite, canto também contra a tirania...".

Esta é Khrystal Glayde Saraiva Santos. Para o público, cantora. Para si, uma intérprete. Ou ainda como entoava Renato Russo, fera, bicho, anjo, mulher, mãe, filha. Essa mesma do show, mas outra completamente diferente conversara comigo dias atrás em sua casa. Cabelos presos, discos no chão, cigarro na mão e filhos a solicitar sua atenção, comecei minha incursão por um território até então, desconhecido.

Lembranças

O gosto pela música remonta à infância, quando brincando na sala, correndo pela cozinha, a caçula de dez filhos pegava no ar a rebarba das canções que os irmãos ouviam. São dessa época as primeiras lembranças de Jackson do Pandeiro e Elino Julião. Já a vocação chegou sem avisar, eco dos acordes do violão de Seu Saraiva – o pai da moça –, que não tinha a menor intenção de ver a filha seguir carreira artística. “Eu lembro a primeira vez, da imagem dele assim tocando. Eu falei: puta merda. É isso que eu quero pro resto da minha vida”. Vida a palpitar no corpo pequeno de 1,56m e que em 2008 festejou 27 anos.

Dos tempos idos, recordações agradáveis. Na memória, as incontáveis bicicletas, os banhos de lama, o jogo de bola de gude. Quem a via soltando pipa ou levando tombo, talvez pensasse ser a Mariazinha, um Joãozinho. Sempre muito amada, muito liberta. Até que um dia...

A música lhe pôs contra a vontade do chefe da família. A menina de casa passou à menina de rua porque queria cantar, e durante dois anos, os dias foram de "chuva e sol, poeira e carvão". Por sucessivas estações, estrelas se transmudaram em teto. Ao cair da noite; ao raiar do dia, descobertas que poderiam ter sido evitadas; transformações que chegaram cedo demais. “Fui mocinha na rua, criei peitinho na rua. Ou eu amadurecia ou eu dançava.” Quando surgia oportunidade, acobertada pela mãe, aparecia em casa, no seu amado Gramoré, na Rua Ilha Bela, Zona Norte de Natal. Era a chance de almoçar, tomar banho...“Passei por perrengues brabos. A Praça Vermelha foi o meu Grande Hotel”.

Em meio às adversidades, descobriu no Beco da Lama, o Abech pub – o lugar onde primeiro trabalhou com música. Fez do palco a sua cama e por cerca de quatro anos, todas as sextas-feiras, depois de saciar a fome com um sanduíche que fazia às vezes de banquete, Khrystal tocava quatro horas do mais clássico repertório de barzinho. “A galera gritava: toca Cazuza, Faz parte do meu show. E eu ia”.

Dias melhores

E assim como vai-se um dia e vem outro, a situação melhorou. Khrystal começou a ganhar dinheiro, estabeleceu amizades com outros músicos, alugou um canto pra morar, conheceu Zé Dias. Voltou às boas com o pai e no lar de Dona Maria Patrocínio e Seu Saraiva, a reunião de família voltou a ser completa e barulhenta. “Minha família é um astral sensacional. Sempre fomos muito humildes, mas de uma felicidade infundada”.

Sempre espontânea e intuitiva, já ficou de olhos vidrados em muito músico para colar os acordes e à surdina, quietinha, tentar executá-los. Carlança que o diga. Sem paciência para freqüentar uma escola de Música, estuda em casa. Sempre foi assim, mesmo quando ganhou o primeiro instrumento, um violão italiano. Para isso, aproveita seu horário às avessas. Afinada com o guardião do sono, Hypnos, só se recolhe alta madrugada e adora dormir a manhã inteira. Não gosta do dia, prefere a tranqüilidade noturna e no tempo livre, mais música. O barato é pôr o disco pra tocar e ficar fazendo nada, atenta a canção, fumando um cigarro.

Pra essa filha de Poti, fazer disco nunca foi um desejo, porque ela gosta mesmo é do palco. “Eu invisto minha vida no espetáculo”. Apesar disso, no momento vive a fase de pré-produção do segundo disco solo, o De Contente. O nome incorpora bem sua condição atual, alegre, de bem com a vida. Com canções autorais, esse trabalho escapa do estigma do côco ao qual o primeiro disco ficou vinculado. “Eu tenho ódio disso! O disco ficou muito tachado. ‘É de côco’. E se você ouvir, ali você tem soul, baião e outras vertentes. Mas como sempre se precisa rotular alguma coisa...” A declaração é debochada, de quem está liberta de amarras e descobriu cedo que o ser humano precisa se comunicar muito bem, ser paciente e generoso.

Planos

Quando se chamar saudade, a mãe de Lynda e Jackson espera ser lembrada como alguém que sempre lutou com unhas e dentes e deixou tudo na vida pra fazer música. A maternidade se deu aos 17 anos e foi um divisor de águas. Da preocupação com o próprio umbigo rumo à descoberta de que tudo agora era para os filhos, até mesmo os sonhos. De uma forma muito delicada, enquanto acariciava o filho que adormeceu durante nossa conversa em seu colo, foi me revelando: “Tudo o que eu quero é que eles cresçam bem. Saudáveis, leais, fiéis aos seus princípios, felizes. Que respeitem uns aos outros, que se apaixonem. Que se quiser ser dentista, que seja o melhor, mas seja de verdade, por inteiro”.

Confiante em um ser lá em cima que é incrível, capaz de fazer uma lua que não balança e uma estrela que não caí, está tudo azul para o futuro. Planos? Seguir turnê pelo Brasil, apresentar show novo em Natal, lançar Disco. “Tocar, tocar, tocar, tocar, tocar. Não me imagino fazendo outra coisa que não seja música”. Não poderia ser diferente, afinal "do poder da criação sou continuação e quero agradecer, foi ouvida minha súplica. Mensageira eu sou da música. O meu canto é uma missão, tem a força de oração e eu cumpro o meu dever há os que vivem a chorar, eu vivo pra cantar e canto pra viver".




Matéria publicada na íntegra na revista Brouhaha. N° 12, maio/jun. 08
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Evaldo Gomes

quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

OSWALDO LAMARTINE DE FARIA, O SERTANEJO


“Cada vivente tem o seu Sertão. Para uns são as terras além do horizonte e para outros, o quintal perdido da infância”. A frase, de Oswaldo Lamartine, revela a grandeza desse que é considerado o maior etnógrafo-contador das histórias do sertão que já passou pelo Rio Grande do Norte.

Na Natal de 15 de novembro de 1919, abriu os olhos para o mundo. Mas a sua raiz secular fora fincada no sertão, nos chãos de pedra do Seridó, assegura Vicente Serejo¹. No final da década de 40, quando Oswaldo começou a publicar seus escritos, José Lins do Rego, surpreso com o estilo do jovem, falou: “... muito teria que aprender com o jovem ensaísta riograndense do norte”. Sobre ele, muitos outros também comentaram. Câmara Cascudo lhe era íntimo, chamava-o por ‘Oswaldinho’ ou ‘sobrinho honoris causa’ e certa vez escreveu: “esculpido em pau-ferro, ágil por dentro e por fora”.

Para Rachel de Queiroz, Oswaldo que havia cooperado na adaptação para TV do “Memorial de Maria Moura”, era o “anjo magro” que no Brasil, mais entendia de Sertão e de Nordeste. E Gilberto Freyre, acertadamente observou: “em torno de assuntos nordestinos se tornaram mestres Luís da Câmara Cascudo e Oswaldo Lamartine”.

Amante da literatura sertaneja, sua introdução ao mundo do saber se deu com a professora Belém Câmara. A fase da adolescência e juventude passou-a nos Colégio Pedro II, no Ginásio do Recife e no Instituto La-Fayette, no Rio de Janeiro. Como um chamado da terra, ingressou na Escola Superior de Agricultura de Lavras, onde em 1940 tornou-se técnico agrícola. Casou, teve filhos e netos. Foi professor da Escola Doméstica de Natal, da Escola Técnica de Jundiaí e até pracinha durante a Segunda Guerra Mundial. Junto com a década de 50 veio à mudança para o Rio de Janeiro e lá, passou a ser funcionário do Banco do Nordeste do Brasil em 1955, permanecendo até se aposentar em 1979. Depois de 38 anos no Rio, refugiou-se na Fazenda Acauã, município de Riachuelo, com seu cachorro “Parrudo”. Lá, morou até novembro de 2005 quando então passou a habitar sua cidade natal, Natal.

Empossado em 2001 como membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras – na cadeira 12, que outrora fora ocupada por seu pai e por Veríssimo de Melo, e cujo patrono era Amaro Cavalcanti –, Oswaldo foi, dois anos depois, agraciado com o título de Pesquisador Emérito, pela Fundação Joaquim Nabuco (PE). Em 16 de novembro de 2005, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) lhe concedeu o título de Doutor Honoris Causa.

Filho do ex-governador Juvenal Lamartine de Faria e de Silvina Bezerra de Faria, o Doutor Honoris Causa de Acauã por algumas vezes, assim se apresentou: “sou sobejo da seca de 19, o último de uma ninhada de dez”.

Certa vez, esse apreciador de armas e homem organizado, tomou os passarinhos que o amigo Monsenhor Expedito criava e libertou a todos eles. Nunca se interessou por política e costumava plantar árvores em homenagem aos amigos. A respeito das amizades, discorreu: “A balança do julgamento dos amigos costuma ser manca”.

Enquanto homem das letras, tudo quanto pôde, ele aprendeu e apreendeu na Escola do Sertão - um mundo que outrora espiava, pisava e não via. Sobre o solo sertanejo, Oswaldo conheceu Bernardo Cintura e Moça Caetana, os nomes pelos quais são chamados, respectivamente a fome e a morte. “O que botei no papel foram apenas momentos do dia-a-dia do nosso sertanejo. Convivi com alguns deles debaixo das mesmas telhas”. Ao longo de 87 anos, edificou uma vida de histórias alicerçadas nos Alpendres d’Acauã, nos Ferros de Ribeiras, nos Arreios do vaqueiro, na Faca de ponta, nas Abelhas do Seridó, na Pescaria de açudes e no Sertão do nunca mais surrupiado pela “terraplanagem cultural da eletricidade, da eletrônica, das estradas, dos meios de comunicação”.

Apesar das mudanças, em Oswaldo, o Sertão é onipresente. “O Sertão é mais que uma região fisiográfica. Além da terra, das plantas, dos bichos e do bicho-homem – tem o seu viver, os seus cheiros, cores e ruídos. O cheiro da água que nos desertos também cheira. O da terra molhada, do curral, da lenha queimada e de cada flor. O belo-horrível-cinzento dos chãos esturricados, o ‘arrepio-verde’ da babugem, a explosão em ouro das craibreiras em flor. Os ruídos dos ventos, das goteiras, do armador das redes, o balido das ovelhas, o canto do galo, o estalo do chicote dos matutos, o ganido dos cachorros em noite de lua, os tetéus, o dueto das casacas-de-couro, os gritos do socó a martelar silêncios, os aboios, o bater dos chocalhos, o mugido do gado e tantos outros que ferem nas ouças da saudade”, conta.

Em 2007, quando a lua reinava em meio às estrelas na noite de Natal, Oswaldo Lamartine de Faria bateu com os olhos nas paredes do céu.



Matéria publicada na íntegra na Revista AJUFE de Cultura. N°6, nov. 08
Texto: Maísa Carvalho
Foto: Giovanni Sérgio

Saiba mais: ¹GOMES, Vicente Alberto Serejo. Oswaldo Lamartine de Faria: o doutor de Acauã. Preá: revista de cultura. Natal, n15, p.12-16, nov./dez. 2005. http://cidadedosreis.blogspot.com/2007_12_01_archive.html
http://poemia.wordpress.com/2008/05/15/o-lorde-da-acaua-oswaldo-lamartine-de-faria/
http://canais.digi.com.br/noticias/2007/03/30/morre_o_sertanista_oswaldo_lamartine